A hora de um menino peralta escrever algum conto…

Montes Claros-MG – Desde que aprontei feio no antigo sobrado da Escola Normal, ao saltar de surpresa nas costas de uma normalista magrela, minha moral andava em baixa no recinto escolar. Nem me atrevia a sair durante  recreio, pois era alvo de olhares recriminatórios, seja por parte de colegas da moça e, também, dos funcionários.

Assim, para não enfrentar nenhuma saia justa rancorosa dos amigos da estudante, fui obrigado a dispensar o delicioso lanche (mingau de fubá com queijo e pão doce) servido pelas cantineiras, optando por comer alguma coisa trazida de casa (laranjada, bolo, banana, biscoito, etc.).

Minha mãe, esperta, logo desconfiou que eu pudesse estar meio velhaco por causa do cômico sucedido, e não acreditou na desculpa de estar enjoado do lanche do educandário. Zelosa, passou então a acondicionar lanche caseiro na merendeira, orientando para ter cuidado, para não amassar tudo.

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Segundo nos prometera, a professora Cleonice substituiu uma prova de português por trabalho de texto. Na época, redação era conhecida como composição. E com o intuito de incentivar nossa criatividade, ela expôs alguns quadros à frente, temática no ambiente rural.

“Comecem dizendo tudo que acham sobre o quadro escolhido”, orientou. Na sequência, acomodou-se atrás da mesa, lendo algo. Deixou-nos à vontade para espremer o cérebro infantil…

Antes de tentar escrever qualquer coisa, xeretei os cadernos dos coleguinhas. Praticamente todos se limitavam a descrever as comunidades rurais. “A fazenda tem dois bois e um cavalo. Tem galinhas também”, exemplo dos textos. Achei tudo aquilo muito ridículo…

Pedi à professora para criar algo diferente. “À vontade, João. Você escolhe qual é o assunto!” – respondeu. E voltou à leitura…

Uma vez que chovia forte naquela tarde, inspirei-me nas trovoadas para contar o drama de uma mariposa. Mais ou menos assim:

“Ela voava muito cansada sob a pancadaria da chuva, à procura de abrigo. Bastou ver a janela aberta de uma casa para entrar. Não demorou a encontrar a cozinha e um fogão enorme, em pleno funcionamento. A lenha crepitava fogo robusto”.

Relatei que a mariposa não se contentou em ficar apenas por perto do fogão, alçando voo para se aquecer acima das panelas fumegantes. Aí, suas asinhas foram enrugadas pelo vapor, e ela despencou direto no meio das chamas, virando cinza em segundos.

No mesmo texto, acrescentei que os moradores da casa nem desconfiaram que o fogão torrara uma pobre criatura voadora. Alternadamente, eles se serviram da comida fumegante, rindo bastante das conversas ali compartilhadas.

Quanto à audaciosa mariposa, que apenas queria um abrigo, deixou de existir de um jeito bem triste, porém anônimo…

Encerrei o texto com a expressão acima.

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Devo destacar que, nessa época, eu já lia e escrevia fluentemente, devorando livros e mais livros do armário de casa. Nem os grossos volumes da Bíblia Sagrada escaparam. Portanto, achava estranho ver alguns coleguinhas ainda soletrando, na fase do ABC. Ler era tão fácil!

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A professora Cleonice quase não acreditou ao ler minha “composição” (texto). Saiu da classe e não demorou a retornar, agora acompanhada do diretor. Apavorado, imaginei que lá vinha alguma bronca…

– Sabia que você é um menino peralta, não gênio! – disse o diretor, a título de cumprimento pessoal. Tratava-se de um senhor calvo, levemente obeso, branco ao extremo.

Eu não entendi aquele comentário, e meu olhar confuso foi captado pela professora.

– Ele está falando do seu conto, João. Muito bom! Passe a limpo, pois vai ser exposto no estande da escola, na Exposição Industrial e Agropecuária, em julho.

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Minha autoestima melhorou, e voltei a circular naturalmente pelos corredores. Só evitava encontros com a magrela dentuça, a normalista que quase derrubei. Geralmente, no recreio, ela ficava no salão de entrada da escola. Acho que também queria me evitar…

ASSIM nasceu o meu primeiro “conto”.

João Carlos de Queiroz, jornalista

*As expressões discriminatórias (dentuça magrela, etc…), relativas à normalista, não condizem com meu pensamento atual. Citei-as apenas como parte do que pensava nos tempos criança.