Por João Carlos de Queiroz – O novo coronavírus bateu às portas do mundo com sua temível foice mortal. Iguala-se à lendária figura de Caronte, barqueiro grego, que, segundo a mitologia grega, é “transportador de almas” (*). Mas há outras versões sobre o mesmo condutor tétrico, não envolvendo propriamente almas: quem não pagar a viagem de ida, jamais retorna pra casa. Difícil não sentir calafrios ao imaginar a mão esquelética do barqueiro aguardando o pagamento em moedas, após o silencioso trajeto em águas lodosas…
Pela mitologia, esse barqueiro representa a própria morte, pois ninguém jamais conseguiu ver seu rosto e tampouco o restante do corpo, sempre envolto dos pés à cabeça por uma horrenda capa preta. Para que a travessia aconteça, reza a lenda, basta chamá-lo, e ele surge rápido das sombras do obscuro pântano, remando firme em pé, atrás do barco. O contrato de transporte é efetuado sem que essa tétrica figura pronuncie uma única palavra…
A comparação entre o barqueiro e o novo coronavírus tem explicação simplória: ambos representam a obscuridade do fim, além de exigir o pagamento de alguma dívida. No caso do novo coronavírus, os encargos são ainda desconhecidos, presumivelmente altos, e talvez a humanidade já não tenha crédito suficiente para garantir a continuidade de sua viagem existencial, detendo-se no lado mais obscuro do pântano, possivelmente a primeira etapa do purgatório eterno.
Males à parte, o novo coronavírus empreende memorável lição em todos nós: o orgulho arrogante {de muitos} não implica em nenhuma superioridade, ou blindagem protetora contra pandemias. Porque, na condição de meros mortais, ricos ou pobres, somos igualmente frágeis. Consequentemente, os habitantes do mundo inteiro estão agora à mercê desse implacável vírus, trucidador de vidas sem qualquer distinção.
E idêntico ao barqueiro transportador de almas, o novo coronavírus trabalha nas sombras, silenciosamente, sem cobrar uma única moeda. Está claro que os interesses materiais não contam nessa travessia obscura que comanda no fragilizado planeta Terra, palco de guerras sanguinárias e perversidades humanas de toda espécie. A natureza finalmente se ressentiu de tantas pancadas…
Questiona-se, portanto, qual seria a real cobrança imposta pela pandemia. Afinal, pelas estatísticas de mortes registradas pela pandemia em todo o mundo, está claro que milhões de pessoas podem permanecer do outro lado do pântano, sem poder voltar. Mesmo que ofereçam sacos e sacos de moedas…
O coronavírus deixa claro, assim, seu poder letal para exterminar a arrogância descabida daqueles que imaginam estar num patamar superior em relação a classes menos favorecidas da sociedade, principalmente as paupérrimas. O ruim de tudo é que aparentes inocentes também se enquadram nessa esteira de morte. Deus é o Único que pode dar uma explicação plausível para a insensibilidade dessa doença.
Despertar da humildade
Com as mortes sequenciais no mundo inteiro, as pessoas – mesmo à distância – começam a se cumprimentar mais. É a redescoberta de que os seres humanos não são diferentes uns dos outros. Isso inclui ainda o desmonte de rancor incompreensível de alguns no dia a dia da vida,quando vinham destilando fel gratuito e contaminando ambientes. Já acordavam mal-humorados, dando patadas em todos à sua volta. A reviravolta causada pelo novo coronavírus está fazendo com que sorrisos amigos substituam caras amarradas…
Mas, conforme disse inicialmente, a disseminação incontrolável do novo coronavírus veio reparar tais falhas de forma quase mágica. Isso porque também esses antigos “donos da razão e melhores em tudo” estão nas mãos de um inimigo ardiloso, que tem driblado as tentativas de blindagem da Ciência com incursões cada vez mais ousadas no seio da frágil vida humana. Dinheiro e poder não garantem imunidade a ninguém nas atuais circunstâncias, é óbvio.
Resta saber, enfim, até onde está a mão punitiva de Deus, ou de outro ser efetivamente superior, visto que os animais – potencialmente inocentes – ainda estão completamente imunes à chacina que o novo coronavírus tem promovido no planeta Terra. Quanto a nós, seres humanos, talvez estejamos pagando nossos pecados, de alguma forma. Pode ser essa a moeda vitalícia, de troca, pela viagem de terror que o misterioso vírus vem proporcionando…
*Na Mitologia Grega, Caronte é o barqueiro servo de Hades. Ele é responsável por carregar a alma dos mortos pelo Rio Estige e Aqueronte.