A defunta que festou a rua de morte…

Mortas que levantam "pra festar" no próprio velório é algo incomum...

João Carlos de Queiroz –  Montes Claros-MG, 1963 – Volto agora à velha casa alugada da rua sem nome, cruzamento de becos estranhos da “Princesa do Norte de Minas Gerais”, para contar sobre certa falecida. Isso mesmo. Uma baita de mulher antipática, que xingava a gurizada da área o tempo todo. “Canhava” até as goiabas que caíam perto do seu muro, pisoteando-as furiosamente. Só pra não ceder a deliciosa fruta às crianças pobres do pedaço. “Se ainda querem, meus amores, podem vir comer…” dizia com ares satânicos. Os pequeninos corriam dela feito o diabo foge da cruz…

Agora, com toda essa ruindade, lá estava ela, estirada em cima da mesa, inchada que nem massa de pão. “Morreu de morte natural”, disseram nas redondezas; e foram cochichos prazerosos. Poucos se atreveram a prestar homenagem {não merecida} àquela sujeita sem-graça.

Menino desconfiado, mais medroso que desconfiado, eu também fiquei ali por perto, no final da tarde, assuntando o movimento de entra e sai de gente, e imaginando o quão apertado não estava a salinha do velório. Dava pra ver, mesmo a alguns metros, os pés rijos da defunta direcionados à portinhola da casa. As velas gigantes tremulavam a cada movimento interno, e ameaçavam quase apagar quando a “outra metade” da portinhola era aberta para alguém entrar ou sair. Povinho inquieto, sô!

Pelas horas anunciadas no retiro solar, logo seria noite fechada. O beco da defunta ficava atrás do nosso quintal, e, graças ao bom Deus, a casa dela bem mais acima, na entrada da comunidade de esquisitos. Se chovia forte, aquilo tudo virava corredeira brava, e da soleira da escadinha lá de casa, num plano mais elevado, eu podia ver a agitação dos moradores em recolher a tralha doméstica próxima do chão, pois a enxurrada invadia tudo, sem modéstia…

O nome da sujeita nem vem ao caso, mas era Esmeralda. Nunca vi pedra preciosa com cara de (…). Uma afronta denominar um monstrengo daqueles de “Esmeralda”.

Já de noitinha, imaginei que aquele velório seria silencioso, sem novidades. E também imaginei que teria dificuldades para dormir, pois só de pensar na vizinhança incômoda de uma defunta, ficava arrepiado. Foi então que ouvi as primeiras batucadas, e o silêncio imaginado se desfez num bate-bumbo improvisado. Ah, a sanfona de Manoelzinho Maurício entrou no circuito, seguida de cantorias diversas. Tudo vinha de lá, do beco da defunta.

Do alpendre do quintal, divisor de cozinha e sanitário, até subi numa cadeira para tentar ver mais além do muro, na esperança de entender o que sucedia no referido trecho, tradicionalmente escuro. Vi somente toscas luzes de velas emergindo dos barracos ao longe, mas não as que “iluminavam” a Esmeralda trambolho,  defunta totalmente fora do meu alcance visual.

Minha mãe veio e me intimou para ir dormir, disse que já era tarde. Na verdade não era, mas dormíamos cedo, sem nada pra fazer. O rádio elétrico pifara há semanas, e meu pai alegou necessitar de válvulas novas, que, por sua vez, exigiam dinheiro. E o salário do velho mal dava para comermos razoavelmente. Tanto que ele caçava codornas e coelhos numa manga próxima, e minha mãe então brigava com ele, tinha dó dos bichinhos. Cansei de vê-la depenando as minúsculas aves quase chorando, e eu ali, sem entender que culpa as bichinhas cometeram para morrer…

Contei a novidade do batuque para o mano Zé, que dormitava sem-graça na cama de molas frouxas, e volta e meia arrastava chinelos pra ir à cozinha beber água. “Tá a maior bagunça nas redondezas da defunta. Som que não acaba mais, virou festa”, informei. O mano, mais desperto, instruiu ser melhor irmos checar aquilo depois que nossos pais estivessem dormindo. E assim fizemos, não sem antes eu cair nuns cochilos surpresos, sono traiçoeiro…

– Acorde, vamos lá ver! Do muro, dá pra assuntar direitinho o que eles estão fazendo. A escadinha está encostada na quina – disse o mano ao puxar meu cobertor. A noite avançada anunciava um friozinho bom, por pouco não desisti…

Escada encostada firmemente no muro, subimos um a um para tomar assento na extremidade mais larga, que estremecia a cada alvoroço de batuque; parecia uma fanfarra escolar, iria assimilar isso depois…

– Uma festa, é uma festa para a defunta! Olhe lá a quantidade de pessoas dançando na porta da casa dela!

O mano tinha razão: iluminados por um lampião a querosene, os festeiros rodopiavam ao redor da portinhola, meio imersos no nevoeiro fumacento. As velas da defunta não ajudavam nadinha na iluminação, só mesmo o solitário querosene.

A música se contorcia nos batuques, cantoria desafinada e na sinfonia ritmada da sanfona de Manoelzinho Maurício, conhecido do meu pai. O sanfoneiro já animou uma festa junina da rua, tempos atrás, recordo bem. Criança tem memória fotográfica. Eu e o mano ficamos observando o desenrolar dessa bagunça bem quietinhos, sem entender como um velório vira festa…

– Meninoooossss! – grito rouco do meu pai, nervosamente postado na varandinha carniceira da casa, divisora do sanitário de fossa.

– Vamos, vamos descer. Senão, apanhamos feio! – aconselhou o mano. Nem precisava dizer nada, pois eu já ganhara os degraus da escadinha após ouvir o primeiro dos berros exaltados…

Por sorte – e coloque sorte nisso -, não apanhamos naquele flagrante de peraltice: apenas fomos intimados a ir dormir e “deixar de graça”, de ficar zanzando pelo quintal, “espiando o que não é da nossa conta” – palavras recriminatórias do “velho”.

Mesmo deitado, eu consegui ouvir nitidamente o som daquela gafieira fúnebre, batucada que mais parecia rodada de candomblé (outro detalhe não associado na ocasião, só num futuro bem adiante).

Não contente com a ordem paterna, decidi que voltaria lá, nem que fosse sozinho. E aproveitei o sono pesado do mano para retirar a tranca da porta e descer, pé ante pé, até o quintal, repetindo todo o trajeto anterior.

Já em cima do muro, vi que a coisa continuava idêntica, em termos de animação. O sanfoneiro agora estava refestelado num banquinho, e outras pessoas se juntaram à batucada, que eclodia ecos pra tudo quanto é lado. O povo dos bairros próximos nem devia estar conseguindo dormir, pensei. E mais satisfeito ainda por saber que a dita comemoração era pela morte da gorducha chata.

De repente, a portinhola da casa da falecida se abriu, e imaginei que devia ser algum outro ‘velador festeiro’; talvez tivesse ido ao banheiro esvaziar a bexiga, sei lá…

Qual não foi minha surpresa ao ver a horrenda Esmeralda de pé na soleira, braços esticados de maneira sonolenta. Ainda que meio distante, semi-envolto na penumbra noturna, mesmo assim a detestável me viu em cima do muro, e acenou alegremente sua gorda mão direita, convidando-me a ir até lá.

Nem sei como consegui descer tão rápido do muro, ansioso por chegar ao aconchego da velha cama sacolejante, meu porto seguro. Porém, minhas pernas fraquejaram ao empreender os primeiros passos na ala gramada, e caí que nem fracote, arrastando-me desesperado. “Menininho, venha cá!” – voz anasalada da Esmeralda do cão, pertinho dali; arrepios sacudiram meu corpo esquálido, de apenas seis anos.

Hão de perguntar o porquê de tanta histeria, e aí explico e sei que vão me compreender: a defunta, agora vivinha da silva, conseguira subir no muro e ameaçava descer pela escadinha, sempre acenando para ir ao seu encontro…

Para piorar a situação, minha voz sumiu de vez, sem que conseguisse formular nenhum pedido de socorro. Uma boa hora para meu pai aparecer, mas devia estar envolto em sonhos…

E lá vinha ela, a ex-defunta, em minha direção; mantinha-se risonha, mais com cara de glutona de crianças do que qualquer coisa amigável. Chorei de pavor, imaginando o pior: tão novinho, uma vida inteira pela frente, e agora ia morrer na bocarra gulosa daquela coisa gigantesca!  Só consegui balbuciar “mãe” e “pai” várias vezes, consciente de ser minhas últimas palavras em vida…

– Ei, acorde aí, para com esse barulho! Basta ter pesadelo e já perturba todo mundo, que chato é você! – resmungou o mano ao me sacudir forte, de maneira impaciente.

Ah, alívio! Então foi um pesadelo! Um doce pesadelo! Só recordo de ter perguntado ao mano se ele travou bem a porta, se não esqueceu de passar a tranca. Não seria nada bom receber a visita de Esmeralda…