A casa das “Marias Tortas” é refúgio de bruxas…

(Parte quatro)

PARA minha surpresa, quem serviu o jantar foi nada mais nada menos que a governanta corcunda. Ela me ignorou por completo, limitando-se a distribuir pratos e talhares na mesa, sem dizer um pio. Depois, ficou ali estática, como se aguardando novas ordens.

Uma das moças estalou um dedo por duas vezes, e ela saiu então de fininho, possivelmente rumo à cozinha. Não demorou sequer dois minutos para retornar à sala trazendo vinho tinto. Deixou-o na mesa e sumiu a seguir, casarão adentro…

Notei que todo o ar de bravata da corcunda sumira perante suas patroas, tornando-se uma humilde serviçal. Mal as olhava de frente, mantendo os olhos baixos, respeitosos, típicos de escravas da vergonhosa era colonial do Brasil e de outros países.

Crisalda explicou que a governanta se tratava de antiga conhecida de sua mãe; ao ficar órfão, e sem ter condições de se manter, elas a convidaram para vir morar no sobrado.

– É carrancuda por natureza, porém uma alma boa. Vai adorar sua convivência, tenho certeza – disse a deusa.

“Convivência” foi mais uma palavra perturbadora dita pela majestosa anfitriã, visto que significava permanência, ou melhor: cativeiro.

As outras três irmãs, conforme as apresentou (Judith, Verônica e Ingrid), apenas sorriram de leve, nada comentando. Pensei que pudessem ser mudas, até que uma delas, não sei qual, gritou sem freio na voz:

– Crisalda!Traga agora o prato principal!

O referido prato veio misterioso, acondicionado numa moringa metálica, e as quatro moças suspiraram alto, de forma extravagante, olhando-o cobiçadamente.

Na minha concepção, elas sabiam ser algo muito delicioso. Mas, por uma questão que nunca entendi, não destamparam a moringa na hora, mas quase meia-hora depois, quando o assado já estava frio.

Impressionante o apetite daquelas gazelas ao devorar os pedaços de carne. Aquilo me deixou enojado, lembrando urubus na carniça. Recusei delicadamente quando me ofereceram, dizendo estar satisfeito. Afinal, comera muito arroz, salada e purê de batata com ovos antes da chegada do prato triunfal.

– Prove apenas um pedaço, vai gostar! – insistiu Crisalda.

Comi a contragosto, forçando expressão de perplexidade positiva pelo acerto do tempero. “Muito bom, mesmo”, disse ao depositar os ossinhos no “cemitério” da mesa, vasilhame que recolhe restos.

As quatro mulheres gargalharam então prazerosamente, parabenizando-me pelo feito de ter experimentado a iguaria servida.

Crisalda serviu mais vinho a todos, realmente bom, e no degustar do licor pós-refeições, ela indicou que meu quarto já estava pronto, acaso quisesse me recolher. “Fica logo ali, acima da escada, primeira porta à direita. A governanta caprichou para recebê-lo”.

Agradeci pelo carinho, só estranhando a falta de TV e som naquela casa tão grande e silenciosa. Pelo visto, as “meninas” dormiam cedo. Consultei o relógio: 20h34. Não era hora de ir pra cama. Certamente que essa regra não valia naquele sobrado-castelo.

– Vamos posar agora para que nos fotografe na mesa – informou Crisalda. Ela e as irmãs ficaram sorrindo bobamente, enquanto eu registrava várias poses.

A enigmática governanta, que não fiquei sabendo o nome, surgiu magicamente na sala, e Crisalda a abraçou para ser incluída na sessão fotográfica. Explicou novamente que ela fazia parte da família há anos; achei natural essa iniciativa fraterna.

A linda moça ainda pegou um pedaço do assado que sobrou na moringa e fingiu devorá-lo com apetite. “Fotografe tudo!”, instruiu.

Conclusa a sessão de poses das moças, pedi para fotografar alguns detalhes da casa, quadros, escadaria, sala de estar e corredor.

– Tudo bem, pode ficar à vontade! – autorizou entusiasmada. Também indicou para que fotografasse uma pele de urso no salão, aparentando sentir frio. Não perdi tempo e registrei a pose, achando graça das carinhas que ela protagonizou.

Agradecido pela atenção, informei que iria descansar, e elas sorriram candidamente, autorizando o meu descarte do grupo de jantar.

Subindo as escadas, fiz uma última foto das quatro no salão, e todas levantaram eufóricas os braços, em sinal de despedida. Só iria dormir; o correto seria um simples “boa-noite”, acho…

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Seca, a governanta estava postada ao lado da porta, e apontou inexpressivamente para dentro do quarto, como se eu não soubesse. Dei boa-noite e sequer a vi menear a cabeça, quanto mais pronunciar alguma retribuição. Mal-educada, isto, sim!

Exultante, tirei fotos também do interior do quarto, da cama de casal, das cortinas, móveis, etc., etc…, e guardei a câmera com zelo.

Deitado, olhando o lustre repleto de luzes, imaginei o espanto dos amigos ao verem tudo que registrei durante minha hospedagem. Nenhum de nós tinha noção do quanto aquele espectro de residência era luxuoso por dentro.

LÁ pelas tantas da madrugada, não me perguntem qual horário, pois guardara tudo para sair bem cedo, ouvi movimentação anormal no salão principal, incluindo música, som de harpa, fole, algo assim…

Fui abrir a porta e ela estava trancada, o que me causou certo pânico. Por algum motivo a trancaram… E a música prosseguia animada lá embaixo, sempre aumentando de volume, com bateção ininterrupta de pés; podia imaginar o espetáculo desse sapateado…

Fui à janela para olhar a paisagem noturna, também a encontrando fechada. Somente pude apreciar, pelas grades, o cenário turvo da noite, adornado por música instrumental e aquele intermitente bate-pés invisível. Também vi minha bicicleta encostada do lado interno do portão. Crisalda não mentiu ao dizer que a guardara.

O jeito foi retornar ao leito e tentar dormir, o que consegui nem sei como, sentindo estranho torpor tomar conta do corpo e me enlevar facilmente para fora dali, projeção incontrolável…

Desprendi-me sem dificuldades do corpo, materializando-me nas escadas, em êxtase feliz. Fui incorporado então à roda de dançarinas, permitindo que a música agitasse todos os meus poros. Nenhuma das moças estranhou a minha presença; pareciam me aguardar.

As quatro gazelas giravam animadamente de mãos dadas, e toda a sala de estar se transformou num carrossel veloz. Crisalda comandava aquele agito festivo. Só não vi a figura mal-encarada da governanta…

Associei essa experiência noturna ao famoso Chapéu Mexicano, em que rodávamos loucamente nos parques de diversões, durante a fase adolescente; qualquer descuido e poderíamos ser arremessados para longe…

Difícil dizer por quanto tempo brinquei com elas, e houve, inclusive, um intercâmbio amoroso durante essa farra, percebi em determinado momento…

Uma a uma, as moças foram saindo do salão, dizendo estar na hora do compromisso. Pude também presenciar vultos esvoaçando janela afora, em voo seguro para algum lugar. Nunca dormiam, pelo jeito. Nem estranhei muito vê-las voando. Talvez soubesse disso o tempo todo…

 

Como se fisgado por força inexplicável, retornei ao quarto após me encontrar sozinho no salão, reincorporando veloz no corpo físico. Ele, ou eu, se preferirem, continuava dormindo placidamente…

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Leves pancadas na porta do quarto me acordaram de vez, e a governanta disse secamente que o café estava servido. Lembrei-me de estar trancada, mas ela abriu sem que fizesse qualquer força.

Perguntei pelas moças e ela não respondeu nada, acrescentando que bastaria chamar, acaso precisasse de mais algo. Um senhor café da manhã, regado com frutas, sucos, bolos, queijo, frituras e tudo que alguém gosta para se sentir recheado desde cedo.

Agradeci pela hospedagem, insistindo para falar com Crisalda ou alguma de suas irmãs, mas a austera governanta, em mutismo irrevogável, abriu as mãos para indicar que minha permanência estava vencida, e a porta, em frente, era meu único caminho…

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A bicicleta estava exatamente no barranco em que a deixara na noite anterior, sem sinal de ter sido levada até o casarão. Pedalei com ânimo para casa, ansioso para revelar as fotos e mostrá-las aos amigos.

Na loja fotográfica, indagaram qual foi o método que utilizei para as montagens dos registros. “Nenhum, só fotografei”, respondi. Um dos profissionais disse que adolescentes não se cansam de mentir. “Lá em casa, já corrijo com meu cinto”, comentou.

Ainda com o envelope fechado, corri para me encontrar com a turminha de peraltas da pracinha. “Fui lá, dormi lá, e fotografei tudo. Vocês vão adorar as gatas que moram naquele castelinho que dizem ser mal-assombrado! Tudo é muito legal, precisam ver”, anunciei ao rasgar o envelope para mostrar as fotografias.

Eu mesmo fiquei pasmo ao ver as fotos que tirara, finalmente entendendo o porquê de o fotógrafo da loja ter indagado como fiz aquelas “montagens”. Nas fotos, estava tudo muito diferente do que vivenciei, a começar das meninas lindas, verdadeiros monstros em poses sorridentes, com dentes pontiagudos e narizes medonhos.

– Juro pra vocês que não era assim que aconteceu! – disse aos amigos, todos espantadíssimos com o que viam. Queriam saber se não tive medo de dormir com tantas bruxas.

“Não eram bruxas, mas moças lindíssimas! Vi todas de perto, dancei com elas!”, respondi desalentado.

Crisalda, a anfitriã, vi nas fotos, ganhava longe de feiura da bruxa de Branca de Neve, e suas irmãs a superavam nisso. Não entendi bulufas, pois fotografara exatamente o que via, e eram todas lindíssimas, perfeitas.

Já a sisuda governanta, aparentava uma expressão bondosa, não muito feia, apenas de pessoa comum. Perto das patroas, era uma legítima deusa de beleza!

O mais impressionante dos meus registros fotográficos, além disso, foi a real situação do sobrado, quase abandonado, todo sucateado. A própria escada estava quebrada; nem sei como subi por ela…

No quarto, que julgara ser luxuoso, talvez um tabernáculo fosse mais confortável e capaz de acomodar alguém: colchão e cortinas apresentavam rasgos, enquanto os móveis estavam despedaçados, a começar pela própria cama, caída de lado. Como vi tudo diferente, nem sei…

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APÓS ter mostrado essas fotos para os amigos, alguém acionou a polícia para ir até o casarão verificar a autenticidade das mesmas. Fui informado por um dos policiais que nada encontraram por lá, em termos de moradores. Ele queria ter certeza de que eu não mentira.

– Vi todas de jeito diferente, lindas, precisa ver! Não como estão nas fotos. E fui muito bem-tratado por todas elas!

– É abandono geral por lá, garoto… Não sei como você criou essas fotos, mas nenhuma delas condiz com a realidade daquele casarão. Não mora ninguém ali há décadas!”

Passei a evitar qualquer proximidade com o estranho castelinho da estradinha do Araçá. Mas juro ter visto vultos femininos sobrevoando as cercanias do decrépito sobrado quando um dia passei de carro por lá. Obviamente, não comentei nada; jamais acreditariam…

João Carlos de Queiroz

Obs: não é relato, mera ficção.