A bruxa do bem…

Na fase criança, sempre temos cisma de algo que não conhecemos. Principalmente de pessoas estranhas. Aquela senhora curvada sempre me causou calafrios; só de pensar em encontrá-la já tremia todo...

Montes Claros-MG – Nos anos 60, morávamos numa casa comum de esquina, sem laje, na região do bairro São José. Havia outras igualmente destituídas de qualquer atrativo nas ruas adjacentes. Meras construções quadradas, similares a caixotes com teto. Construções que abrigavam tudo: homens, mulheres, crianças, idosos e animais.

Na minha rua, tinha até um gato branco que sempre acompanhava um cachorro peludo rua afora, para logo retornar ao barraco; eu achava graça naquilo…

Mais acima, na confluência de um beco pra lá de abandonado, sempre alagado durante o período chuvoso, residia um sem número de pessoas tristes. Tinha por mim que elas cumpriam metódica rotina existencial, saindo cedo para trabalhar e retornando à tardinha, quase ao pôr do sol.

Tão rápido como deixavam o beco, também se enfiavam nele para mais um noite de presumível sono cansado. Por vezes, pelo silêncio da noite de nossa cidade, então atrasada, podia-se ouvir melodias roufenhas em rádios invisíveis; miscelânea confusa de sons que buscavam algum entretenimento…

Com meus robustos cinco anos, eu costumava pedalar energicamente o velocípede pelo quarteirão de terreno irregular. O som do “motor”, produzido pela boca, variava conforme as rampas transpostas, e, se acaso atolasse em algum ponto, aí fazia estardalhaço de aceleração: Roooommmmmm!

Foi assim que dei de cara com a famosa velha da esquina, moradora de uma casa de pau a pique, construída certamente há décadas, julgando-se pela exposição de tabocas e barro. Qualquer hora poderia desmoronar fácil. Imaginei a quantidade de goteiras ali dentro…

A corcunda, apelidada de bruxa pelas crianças da rua, ficou me observando sisuda quando passei a seu lado. Fingi não vê-la, e continuei apitando o velocípede por mais alguns metros. Depois, mais seguro, arrastei-o rápido para guardá-lo em casa, e nem me atrevi a bisbilhotar, do alpendre, se a bruxa ainda estava por lá…

Após almoçar, num cochilo tradicional, sonhei com seus olhos arqueados me sondando ferozes, sombreados por rugas e por aquele emaranhado de cabelos cinzentos, crespos, inimigos de escova. Não deve tê-los penteado jamais. Bruxas não prezam beleza…

Por vezes, à noitinha, arrisquei olhadelas curiosas em direção ao casebre da bruxa, apavorando-me só de pensar que ela pudesse estar preparando alguma poção mágica, a fim de fazer maldades com alguém.

Sem atinar para os meus receios, minha mãe não se deu conta de que as insistentes puxadas de saia, enquanto meu dedinho apontava para a casa da esquina, significavam quase um pedido de socorro. Tanto que perguntou, nem sei quantas vezes, por qual motivo eu olhava tanto naquela direção…

Ainda que falasse, adotei o mutismo e gestos para comunicar meus medos. Tinha por mim que a velha poderia escutar minhas palavras, e viria se vingar raivosamente. Gesticular era melhor…

UMA TARDE, depois de brincar na pracinha João Catone, mais acima, perto da Rua Marechal Deodoro, desci  vagarosamente pela rua com o velocípede, tentando ser o mais discreto possível ao passar em frente à casa da bruxa.

De repente, fui surpreendido por um baita chute, e mais uma vez levei cascudos covardes de Maneco, menino gordo que adorava surrar crianças.

Maneco, aos oito anos, parecia um gigante perto de mim, e foi chorando que pedi para não me bater mais. E ele lá, desferindo cascudos impiedosos, enquanto me chutava. O velocípede já tombara de lado…

Maneco teria continuado me surrando se não fosse a velha corcunda intervir, levantando-o pelos fundos das calças. O gorducho covarde berrou de pavor, pois também sabia de sua fama de bruxa. Foi a vez de levar bons cascudos, e ela sibilou com voz gutural:

“Nunca mais bata em crianças indefesas, seu malandro! Senão, vai virar sopa no meu caldeirão!” – ameaça de bruxa.

Disse isso e soltou suas garras enrugadas das calças de Maneco, não sem antes fitá-lo com aqueles olhos mortiços arregalados.

O espanca-criança saiu em franco alarido de socorro pela rua. Percebi que estava todo mijado…

Ainda caído no chão, temi ser o próximo a sofrer algum tipo de agressão, mas a velha me auxiliou para que levantasse, recomendando maternalmente:

“Vá pra casa, menino! E nunca mais vá brincar sozinho longe dela!”

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Desde esse dia, passei a olhá-la mais compreensivo, percebendo que se tratava apenas de uma senhora idosa, bem solitária. No Natal, fiz questão de levar um prato da ceia e um pedaço de bolo, atitude parabenizada por minha mãe. “É assim que tratamos os mais idosos, filho”, disse ela ao preparar o prato.

Também a defendi quando os meninos a chamavam de bruxa, explicando ser uma senhora boazinha.

Maneco, pra variar, sumiu do mapa; nunca mais o vimos no bairro; o que foi alívio para a criançada local, acostumada a ser surrada pelo valentão mirim.

***

No ano seguinte, segunda quinzena de dezembro, ao contrário da movimentação de velas andando no paupérrimo imóvel da senhorinha, só captei escuridão.

Presumi que ela deveria ter ido dormir mais cedo, no mínimo, principalmente por ser quase Natal. É a época em que a solidão aflige mais os idosos, em face da debandada geral de parentes, filhos, netos, etc…

Mas, preocupado, disse pra minha mãe que estava tudo muito quieto por lá, e ela explicou que a velhinha deveria ter viajado para passar o Natal com a família. Dormi torcendo para ser isso…

Lá pelo meio-dia, vi muito movimento em frente à centenária casa de taboca, além de um carro funerário estacionado bem em frente. Eu quis saber o que acontecera, mas minha mãe ordenou para que ficasse em casa.

Soube, depois, pelos meninos, que a velha morrera, corpo descoberto por uma samaritana que sempre a auxiliava, visitando e fornecendo produtos alimentícios todo mês. Visitas mais constantes no Natal…

O triste de tudo é que boa velhinha partiu deixando um grande mistério atrás de si, pois não ficamos sabendo de alguém que tenha se apresentado como seu parente. Sequer teve um funeral digno, escutei comentário da vizinha.

Quanto ao velho casebre, ainda resistiu alguns meses, e, de modo encantado, sucumbiu sozinho, como se dando por encerrada sua missão de abrigo humano.

Tive por mim que a “alma dessa casa” apenas aguardou a partida da idosa moradora para também descansar; cumpriu sua missão.

AINDA HOJE, quando vou a Montes Claros, passo desconfiado pela mesma rua, tentando localizar qual era o exato local do casebre da boa velhinha. Que, de bruxa, nada tinha, mas, sim, de fada madrinha!

Ficou a lição: nunca julgue as pessoas pela aparência! Anjos também se escondem em físicos decrépitos.

João Carlos de Queiroz

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