Conta-se até hoje, no bairro Alto São João (Montes Claros-MG), a história de um adolescente apelidado de “Zeca Girano”. O menino foi amaldiçoado pela própria mãe, por tê-la torturado durante anos.
Dona Josefina tinha ainda uma filha amorosa, de nome Matilde: foi auxílio precioso para aguentar o calvário de criar o filho tinhoso após o falecimento do esposo, o vaqueiro Tobias. O homem bateu a cabeça ao cair de cavalo descontrolado, em galope desenfreado.
A menina Matilde arranjou namoro sério com Serafim de Deus, moço de família respeitada, disposto a subir no altar. O casamento aconteceu e a filha partiu, deixando a mãe à mercê do peste. Logo envelheceu rapidamente, de tanto sofrer nas mãos do endiabrado rebento.
Uma das diversões prediletas desse filhote de demônio era montar nas costas da mãe e açoitá-la aos gritos de peão boiadeiro. “ÔOOOOAAAAAAA!”
Também não poupava esporadas sangrentas nos flancos de sua genitora, ao “cavalgá-la” pela casa inteira. Nos eventuais desmaios da pobre, ele desferia violentas chicotadas. “LEVANTA, VELHA!”
Bondosa, a mãe nunca o denunciou, apesar de os poucos vizinhos questionarem sempre o que andava acontecendo, pois ouviam seus gritos de dor e choro, quase que diariamente.
Mesmo negando, dona Josefina não os convencia: as marcas roxas, provenientes das chibatadas nos braços e pernas, evidenciavam tudo. Ela sempre respondia: “Deus instrui para perdoarmos”.
Um dia, não aguentando mais tanto sofrimento, ela pegou uma “mão de pilão” na cozinha e o amaldiçoou:
“Você vai penar infinitamente no inferno, infeliz! Não terá paz nem quando morrer!”
Praga de mãe é fatal…
Dona Josefina parecia estar adivinhando que Zacarias (nome de batismo do filho maldito) faleceria em breve, vítima de enigmática doença. Seu abdômen apresentou inchaço repentino, travando a digestão e paralisando pernas e braços. Nem aguentava se arrastar…
Sem poder andar, o torturador ficou confinado na cama, gritando estar sendo devorado por bichos. Médico algum descobriu a causa da estranha doença. Assim, o menino mau começou a pagar seus pecados…
A morte o colheu em pleno dia, perto das 11h. Feições crispadas, “ZECA” (ainda não apelidado de “GIRANO”) sinalizou, assim, a continuidade do seu martírio, no mundo das trevas…
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Enterraram-no numa cova cimentada e sem grades, ao redor de antigo jazigo da família. Nenhum vizinho compareceu à cerimônia, apenas dona Josefina (mãe), dona Laurentina (avó) e a filha Matilde.
Antes da missa de Sétimo Dia, mandaram avisar que a sepultura de Zeca havia sido arrombada. Aflita, dona Josefina voltou ao cemitério correndo, para saber mais detalhes. Religiosa, considerava profanação arrombamento de túmulos.
Ao chegar ao Campo Santo, o encarregado e o coveiro a receberam. Ambos estavam sem-graça, dando a entender ter alguma revelação a mais.
– Olha lá, o caixão está vazio, e o defunto sumiu. Choveu manso ontem à noite; assim, ainda podem ser vistas pegadas fortes perto da sepultura. A Policia deduziu que as pegadas correspondem às de alguém com características correspondentes ao morto. Defuntos andam?! Não entendi nada… Os peritos coletaram amostras para averiguar a fundo.
Quedada pela informação, dona Josefina levou ambas as mãos à boca. Lembrou-se da praga que rogara, semanas antes. Então, olhou ansiosa para o encarregado, à espera de mais notícias; desejava saber, no mínimo, o paradeiro da pérfida criatura que gerou.
– Não sou de acreditar em coisa ruim, minha senhora… No entanto, sabemos que seu filho nunca foi nenhum santo! Era o Satanás em pessoa! Perdoe-me a franqueza!
O encarregado disse isso já fazendo um rápido Sinal da Cruz+…
A pobre mãe saiu desolada do cemitério, simplesmente sem saber como agir. O encarregado balançou a cabeça de forma impotente. Afinal, seria cômico prometer à senhora que procuraria o defunto, trazendo-o de volta.
Vendo-a se distanciar, ele emendou sarcástico ao coveiro:
– Aquela lá, pobrezinha, nasceu foi pra sofrer: durante anos e anos foi saco do pancada daquele maldito, filho-marginal.. . E agora que esse ZECA driblou até a morte, as coisas vão esquentar, anote aí o que estou dizendo, Batista (coveiro). Ele deve é estar girando por aí… Com certeza, vai atrás dela!
– É, senhor… Eu vi aquele menino crescer, até virar rapazinho… Aos cinco anos, recordo bem, já cuspia e xingava a mãe… Não respeitava ninguém!
– Nem me fale disso: fico inflado de revolta só de imaginar tal cena. Porque, se tivesse testemunhado, usaria esse seu enxadão de coveiro bem no meio da cabeça dele! A sorte desse infeliz foi que morava longe…
– A conversa tá boa, Batista, mas é quase noite chegante, hora de ir pra casa… Ah… como é mesmo o apelido do tal Zeca asqueroso? Você o mencionou há pouco…
Sem entender, o coveiro apoiou o pé na lâmina grossa do enxadão, respondendo inseguro:
– Sobre Zeca? Apelido?! Não lembro de ter dito nenhum… Somente disse que ele merece é ficar “girano” nas sombras. O senhor também falou algo parecido…
– isso! “Zeca Girano”! Mas vou indo… E nem precisa deixar o portão aberto ou sem cadeado, para o caso do fujão de covas querer voltar. Se o guri é capaz até de estourar concreto, vai conseguir entrar aqui facilmente. Você vai aguardá-lo? – indagou sorridente.
– Tá variando, patrão? Quem quer aguardar coisa ruim em cemitério?
Vendo o patrão alargar passadas ladeira abaixo, o coveiro pegou sua mochila e gritou:
– Espereeeee! Estou saindo também!
Os dois desceram juntos pela Alameda das Flores, naquele tempo sem nenhum ornamento elogiável…
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No dia seguinte, não se falava em outra coisa no bairro Alto São João e cidade afora: “O menino da Josefina fugiu do cemitério”, uma das manchetes. Montes Claros ganhou espaço na mídia, em geral…
O disse-me-disse de Zé Povo incluía outras versões: “Aquele Zeca tinha pacto com o diabo!”; “Ressuscitou pra terminar de matar a pobre mãe!” Infinidade de boatos…
Dona Josefina fingia não escutar a boataria, e se esquivava de abordagens sobre o caso quando ia ao armazém e à igreja. Passou a acender velas para iluminar a alma de Zeca, além de encomendar missas.
Nenhum fato estranho foi registrado na casa dela e no Alto São João por meses. O zumbi simplesmente evaporara!
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Com a chegada da quaresma, o fugitivo de tumbas deu o ar de sua sinistra presença em vários lugares. Um deles foi na pequena chácara da irmã Matilde, onde ela criava ovelhas. A própria o flagrou sugando sangue de um dos animais. O morto-vivo estraçalhara a garganta do ovino…
– Zeca?! Pare! Vá embora agora! – ordenou. Ele saiu ágil, arrastando a presa…
Matilde ficou chocada ao constatar que o irmão caçula se transformara numa espécie de lobisomem. Preocupada, foi prevenir a mãe. Ela também mantinha modesta criação de pequenos animais…
Certamente por saber que o filho continuaria a aprontar, dona Josefina reforçou portas e janelas com barras de ferro. “ZECA” teria sérias dificuldades em rompê-las.
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QUARESMA – Devia ser pouco mais da meia-noite do ano seguinte quando ela escutou estardalhaço anormal no galinheiro. Àquela hora, as aves deveriam estar dormindo pesado. “Meu Pai!” – pensou. “SERÁ ELE?”
Dona Josefina pegou a mão de pilão e destravou a barra de ferro de uma janela lateral ao galinheiro. Muniu-se de lanterna holofote para vasculhar o terreno e ver o que causava tanto barulho.
As galinhas cacarejavam desesperadas. “Está dentro do galinheiro”, pensou. Dona Josefina tinha quase certeza de que era “Zeca Girano”.
Sem largar a mão de pilão, ela abriu a porta e questionou. “Quem é?” Foi aí que viu o filho amaldiçoado saltar fora com duas aves nas mãos, pingando sangue…
ZECA não se intimidou com a presença da mãe, e ali mesmo, diante dela, devorou os animais com penas e tudo. A morte o deixara mais robusto e cinzento…
– Estou comendo o que é meu! Você é minha próxima vítima, velha chata! Vou beber seu sangue caduco! – ameaçou com voz tenebrosa, rouca.
Para provar que falava sério, aproximou-se do alpendre da casa. A metros, dona Josefina sentiu o bafo nauseante do seu hálito fétido, de carne em decomposição.
– Pode vir! Olhe o que eu guardei pra você! – bradou exibindo a mão de pilão. O morto-vivo zurrou feio e saiu correndo. Impressionante sua agilidade ao saltar a cerca do curral e se embrenhar veloz pela mata…
Aquela foi a primeira e última “visita” que a besta fez a dona Josefina. Outros animais foram imolados identicamente nos dias seguintes.
Fala -se também que todos os moradores passaram a ter mão de pilão em casa, cientes de que o instrumento realmente impunha medo ao adolescente zumbi.
Foi a época, aliás, em que o estoque de mão de pilão esgotou-se rapidinho nas lojas de produtos domésticos de MOC. Sem falar na majoração abusiva dos preços…
Temendo dar de caras com esse andarilho amaldiçoado, os moradores passaram a se recolher em casa antes do pôr do Sol. Não raro, arrepios aconteciam ao escutarem uivos ou galinhas alvoroçadas.
Será que “Zeca Girano” ainda anda pelo Alto São João?
Por João Carlos de Queiroz, jornalista
Direitos Autorais Reservados
*Baseado numa lenda urbana de Montes Claros (nomes e lugares fictícios). Nem eu mesmo sabia qual final dar ao referido “causo”. A lenda NÃO é de minha autoria! Apenas criei esse texto enfadonho, desculpem…