Por João Carlos de Queiroz – Meu pai contava essa história às gargalhadas. Aconteceu durante uma das muitas pescarias que ele organizava ao longo do ano. Os companheiros variavam, bem como os lugares. Mas a algazarra era sempre a mesma. Regada a farta cachaça curraleira e tira-gosto de piaba.
Desta feita, todos resolveram armar acampamento no poço da Fazenda Funda, Rio Verde, Minas Gerais. Pedrinho ‘Mancó’, todo afoito, aceitou de imediato o convite para novamente integrar a turma de aventureiros das águas. Todos se divertiam com suas piadas. Sempre bem-humorado.
Baixinho e gordo, ele tinha uma perna bem mais curta que a outra, e isso fazia com que pendesse o corpo de lado, quase caindo ao andar. Paciência de Jó esperá-lo nas andanças pela mata. O pobrezinho, arfante, até que se esforçava para acompanhar o ritmo dos amigos, mas a perna deficiente impunha dificuldades nos pretendidos movimentos.
Assim, enquanto o restante do grupo praticamente corria no interior úmido da mata ribeirinha, na ânsia de começar logo a pescaria, Pedrinho vinha a passos de João Teimoso, cai não cai. Consequentemente, ficava pra trás…
– Ué, pessoal, Pedrinho ainda não chegou! Pode ter se perdido na mata… – alguém sempre alertava.
– Pedrinho! Pedrinho! Pedrinho! – gritaria de alerta, coletiva.
Ao longe, ainda no eco desses gritos, o coxo geralmente respondia cansado:
– Estou indo, pessoal!
Só que ainda demorava uns bons minutos para os colegas escutarem o farfalhar de mato sendo pisoteado pelas passadas do deficiente. A bota direita tinha solado de quase meio palmo, tentativa de compensar a diferença de altura da outra perna…
A Fazenda Funda tinha esse nome justamente por causa de um poço próximo da antiga sede, de profundidade desconhecida no seu miolo. Tampouco os moradores se arriscavam a nadar ou pescar no lugar. Essa impopularidade povoou suas entranhas de considerável número de cardumes.
Houve quem dissesse que o pretenso “pesqueiro” abrigava piranhas, sucuris e jacarés. Nadar por lá não era recomendável…
– Pescador que é pescador não tem medo de nada! É neste poço fundo que vamos buscar nossos peixes! – afirmou categórico quando da sugestão de irem para a Fazenda Funda.
Os preparativos levaram dias: geladeira (improvisada), lanternas, lampiões, varas de pescar, redes, tarrafas, iscas, comida (arroz, feijão, mandioca, carne seca) e bebidas. Muitas, aliás…
A citada geladeira foi feita pelo meu pai: uma caixa de madeira coberta de zinco, com isopor nas paredes internas. Ali ele armazenou barras de gelo e serragem (que conserva o gelo).
Os pescadores passaram rapidamente pela Fazenda Funda, apenas para saudar o proprietário, velho conhecido. Zulu das Quengas já beirava os 80 anos, mas tinha notória disposição. Fez questão de estar a postos se acaso a turma precisasse de algo. E serviu um lauto café de boas-vindas.
– Se a comida que fizerem não estiver a contento geral, venham pra cá. Minha cozinheira não decepciona, é talentosa no fogão – convidou. Simpático Zulu das Quengas. Diziam que tinha sido mulherengo incorrigível na mocidade.
– Agradeço sua hospitalidade, amigo, e passaremos por aqui antes de voltarmos – garantiu Zé da Cachorrinha, pescador encarregado da cozinha. – Da minha parte, garanto que todos vão gostar do “rancho” – gabou-se.
E todos partiram rumo ao famoso poço fundo…
A primeira providência foi montar redes nas suas extremidades. Já o acampamento ficou mais atrás, a mais ou menos uns 300 metros do local, ao lado da estradinha. Tinha até uma mina tímida que brotava de rochas dispostas ali pertinho, com água potável fresca, deliciosa.
Para meu pai, aquele poço também era novidade. Ele já estivera antes num outro pesqueiro rio acima, igualmente propriedade de Zulu das Quengas. No roteiro do passeio, prevaleceu o desafio de irem pescar justamente num lugar temido pelos comunitários daquela região.
O ambiente do poço impressionava à primeira vista. “Mais de 8 metros, já mediram antes”, comentaram os pescadores ao jogar tarrafas ali por perto, sem muito sucesso. O poço da Fazenda Funda não estava tão provido assim de peixes…
Depois de inúmeras tentativas de capturar os pequenos nadadores, pretensiosamente refestelados naquelas águas escuras e num ambiente sombreado por árvores gigantes, a turma visitante optou por retornar ao acampamento, menos Pedrinho ‘Mancó’ e meu pai, encarregados de retirar as redes. Ninguém queria pescar à noite…
Os outros companheiros, tarrafas nas costas, já saíram na frente, rumo ao acampamento. A conversa de janta especial de Zé Cachorrinha tinha aguçado o apetite geral. “Se demorarem muito por aí, vamos comer tudo!” – avisaram.
Com a saída deles, cessou a matraca incessante de conversa, e o silêncio da noite quase chegante ficou pesado. Só se ouvia as águas paradas sendo açoitadas pela puxada de redes. Meu pai suava bastante nessa tarefa, e Pedrinho ‘Mancó’, compenetrado, já se dirigia bamboleante à retaguarda do poço para desamarrar a última. Foi aí que ouviram a voz…
– Aqui não tem peixe! Vão pescar em outro lugar! – voz claríssima, aguda.
Meu velho contava que aquela voz não vinha, decididamente, de nenhum ser humano. O tom era impregnado de maldade pura…
– Eu pensei ter sido brincadeira dos colegas, talvez usando canudo de papelão pra disfarçar a voz. No que ele pensava isso, disse, a voz voltou então ainda mais forte:
– Estou avisando: saiam agora daqui! Não quero vocês na minha casa!
Meu pai olhou conta ter olhado ansioso para a figura de Pedrinho, a dezenas de metros dali, na tentativa de saber se ele escutara algo parecido. Pior que sim: Pedrinho havia parado de desamarrar a rede, e olhava preocupado ao redor.
– Eh, Pedrinho! Estou ouvindo uma voz esquisita. E fala de tudo quanto é lado; parece se movimentar… – gritou trêmulo.
Segundo recordações do bom pescador que foi meu velho, a tal voz alardeou clara ameaça num novo pronunciamento:
– Vou é partir pra ignorância com vocês. E não vão gostar! É quando a noite chega, que nem agora, que costumo sair para o mundo dos vivos…
“Mundo dos vivos”. Aquele aviso estava mais do que claro: meu pai largou as redes no chão e saiu correndo, enquanto gritava:
– Vamos embora, Pedrinho! O poço é mal-assombrado! Tem alma guardiã na área!
Meu velho utilizou suas longas pernas para empreender mais velocidade nas passadas, louco pra ficar o mais longe possível daquele poço sinistro. Corria desatinado, sem pensar no pobre ‘Mancó’ e sua deficiência. Pelo que conhecia de Pedrinho, talvez estivesse ainda na beira do poço, ensaiando as pesadas passadas de bambolê…
Qual não foi sua surpresa quando alguém passou rápido a seu lado e saiu pulando as galhadas de árvores tombadas ao longo do caminho, agilidade idêntica à robusto atleta olímpico ao enfrentar obstáculos diversos numa pista de competição.
– Mas é o Pedrinho ‘Mancó’! – reconheceu atônito, de relance corredor. Não pôde nem pensar muito nisso, pois Pedrinho sumira magicamente dentro da mata. Dizem que ele chegou ao acampamento com folgados minutos de antecedência…
É por essas e outras que o mundo nos surpreende. Em determinadas situações, cegos até “veem” e coxos conseguem quase “voar”, deixando de lado as limitações que enfrentavam no dia a dia comum…