Américo deixou saudosa mensagem impressa num hangar…
Quando meu pai faleceu, no início da década de 2000, fui a Montes Claros para a missa de Sétimo Dia. Uma viagem triste, a bem da verdade. Seria uma última homenagem a alguém querido…
Mal cheguei em Montes Claros e já procurei Luiz Carlos Paixão, companheiro de longos anos. Eu e Paixão nutríamos verdadeiro amor por aviação, e nossos encontros, via de regra, terminavam em voos aventureiros nas imediações da city.
Piloto experiente de ultraleve, Paixão gostava de brincar com as máquinas aladas, por vezes em movimentos quase acrobáticos. Tinha domínio total de pilotagem.
Eu já voara no seu ultraleve algumas vezes. Naquele dia, no entanto, a máquina entelada estava em revisão. Paixão me convidou para embarcar no Airale, ultraleve de tecnologia avançada, propriedade de amigo. Aparelho que lembra um helicóptero.
Inicialmente, adquirimos combustível de aviação no aeroporto local, rumando então para a pista da Rocinha, a cerca de dois quilômetros. Ali existia um pequeno hangar, espaçoso o suficiente para duas aeronaves.
Chegamos à pista e eu perguntei por Américo Martins, que normalmente sempre batia plantão diário por ali, segundo o próprio Paixão. Ninguém soube informar.
– Ele deve vir mais tarde – disse um funcionário.
Abastecemos apenas o tanque esquerdo da aeronave, pois Paixão registrara que o direito tinha um terço.
– Logo que o motor funcionar, a bomba transfere normalmente – outra explicação.
Meu irmão mais velho, Zé Antônio, também presente, ficou nos aguardando na pista. O horário de voo não era necessariamente propício, perto do meio-dia, turbulência garantida.
Por outro lado, a precária pista Rocinha da não oferecia a menor segurança para operações de decolagens curtas. Preocupei-me com uma cerca de arame farpado, alinhada bem no seu final.
– Essa aí, descanse, é chazinho: nós vamos passar por cima, fique tranquilo – assegurou Paixão.
Confiei em suas palavras, conhecedor das habilidades do amigo aeronauta.
O ultraleve rolou vacilante até o final da pista, e, após alinhá-lo, Paixão acelerou forte. Pensei que não decolaríamos naquela subida! E ainda tinha a cerca de arame farpado mais à frente, imponente barreira.
No corre-corre trepidante, em virtude dos buracos da improvisada pista, o aparelho decolou insosso, sacudido por uma saraivada de ventos. Que alívio ver a cerca sendo transposta a metros de altura!
MAL cruzamos a serra mais próxima, saída de Montes Claros, cortada pela BR-135, percebi que o aparelho estremeceu todo, indicando alguma falha…
– Ih, Paixão, está acontecendo algo aí… – alertei o amigo pelo intercomunicador.
Na verdade, o piloto já percebera o início da pane, mexendo aqui e ali, sem parar. E disse, roucamente, que tinha duas notícias para mim, “nenhuma delas boa”, adiantou.
– Primeiro, a bomba de combustível não está transferindo nada, e aquele terço de gasolina que tínhamos, deve estar lembrado, simplesmente já acabou! Em segundo lugar, podemos ter pane seca com um dos tanques cheio!
Nem bem falou isso, a hélice tripá, de fibra de carbono, parou de girar, imobilizando-se macabramente. Ainda bem que o perigo de estatelar sobre a serra não existia mais, apenas um abismo verde sob nossos pés…
Paixão arregalou os olhos, e tentou, por duas vezes, ligar o motor voando, sem sucesso. Um ameaçador sibilar de ventos indicou que estávamos caindo vertiginosamente. O paredão da serra se igualava, agora, a um poço aberto de elevador…
O experiente aeronauta picou o nariz do ultraleve tentando ganhar velocidade e, assim, garantiu planeio para uma aterrissagem de emergência.
O aparelho, afoito por terra, afundou cada vez mais veloz em direção à mata que nos estendia braços misteriosos…
Ao lado de Paixão, assistindo seus esforços para não morrermos, creditei estar vivendo meus últimos minutos, e um filme flash passou rápido pela minha cabeça, incluindo vitórias e pecados. O julgamento final começara…
A manta verde se agigantou cada vez mais voraz diante do ultraleve, e Paixão instruiu para que segurasse firme, ciente do impacto violento a seguir.
Torci para não existir nenhuma cerca de arame farpado também naquela área de matas…
Por sorte, aterrissamos sobre uma plantação de milho, e foi quase divertido, à exceção do susto em vigor, assistir a quantidade de espigas voando ao nosso redor, enquanto o ultraleve ameaçava catapultar.
Alguns estouros aconteceram também no ato desse pouso tresloucado, e na imobilização poeirenta, ainda atordoados pela surpresa do sinistro, constatamos que cabos tinham sido rompidos e a carenagem do trem de pouso esquerdo ficara pra trás…
Vimos algumas pessoas correndo em meio à espessa camada de poeira acinzentada, levantada pela aterrissagem forçada. Observei-os sem entender e, num relance de pensamento, imaginei que pudessem ser anjos nos saudando…Eram agricultores locais.
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VOLTANDO À ROCINHA…
As avarias no ultraleve foram mínimas, limitando-se a um pneu estourado e cabos de aço que sustentam as asas.
A causa do acidente: bomba de combustível. Foi trocada dias após e o aparelho voltou aos ares, decolando dali mesmo, depois que um trator do fazendeiro Geraldo Durães aplainou o terreno.
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Ao retornar à Rocinha de carro, e todo sujo de poeira, meu irmão deu um salto assustado. Disse ter sentido premonição de que algo ruim acontecera.
Ele também me informou que Américo me aguardou um tempão no hangar, e escreveu uma mensagem na parede interna, utilizando pedaços de carvão.
Foi uma das mensagens mais lindas que recebi em toda a minha vida!
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Desse modo, reembarquei para Cuiabá sem ver novamente o meu amigo Américo! E foi em terras mato-grossenses que recebi a notícia de sua convocação para trabalhar perpetuamente na ala divina. Lá de cima, seu olhar atento deve estar vigiando e protegendo a todos nós. Inclusive, os animais que tanto amava…
João Carlos de Queiroz
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