Ainda criança, “noivei” a bordo do Trem Azul…

Anos 60…

Ótimo saber que criança pode tudo. Ou, no mínimo, quase tudo. Isso significa compreensão de gafes, além de terno olhar amadurecido às traquinagens comuns na idade do ‘quero-saber-de-tudo-que-acontece-no mundo’. É a fase dos cansativos “por quês”, e o nome disso e daquilo…

Foi assim, meninão malino, inocente ao extremo, acompanhado do mano mais velho, que embarquei no Trem Azul em Pires e Albuquerque, antigo distrito bocaiuvense. Nosso destino: Montes Claros. Viagem curta, porém deliciosa.

Mais ou menos em 30 minutos, segundo captei nas conversas adultas nada cochichadas, o trem aportaria na hoje saudosa Estação Ferroviária Engenheiro Pires e Albuquerque.

Alguns curiosos chegaram a saltar no meio da via férrea, colando os ouvidos aos trilhos. Se vibrassem, seria indicativo de que a composição estava próxima…

– Está pertinho daqui… – disse um deles, agilmente saltando de volta à plataforma.

###

Eu e o mano Zé não tínhamos nenhuma bagagem, à exceção de mochilas leves, roupas essenciais às férias no sítio de tia Nina, fáceis de carregar pela quase neutralidade de peso.

Outros passageiros, observei, levavam aquela viagem muito a sério, julgando-se pela tralha acompanhante: malas, pacotes, sacolas, etc.; fileira sincronizada ao longo da pequena plataforma distrital.

Certamente, alguém aí irá querer me corrigir, informando que Alto Belo é o atual nome do distrito. Para mim, Pires é Pires, sempre será Pires

###

Quando procedente de Belo Horizonte, o Trem Azul passava pelo simpático distrito sempre de manhãzinha, no pique da alvorada; horário em que pássaros e outros bichos entoam cantoria desenfreada. Difícil não se quedar aos encantos da mãe-natureza…

###

Finalmente, depois de ecoar estrondo buzinador à distância, a locomotiva vermelha e amarela surgiu imponente na curva à esquerda, em marcha de ‘vou-parar-para-que-vocês-embarquem’. Houve quem se afastasse cauteloso da beira da plataforma…

A máquina, o vagão dos Correios e o vagão-restaurante passaram lentamente à nossa frente. O imenso comboio estacionou no terminal apenas os vagões de passageiros, em chiados que estremeceram tímpanos. Obrigaram-me a improvisar tampões de ouvidos com os dedos.

Imobilizado na plataforma,  o Trem Azul se assemelhava a um lagarto apático, atitude de repouso à espera de não se sabe exatamente o quê…

Cada amanhecer em Pires, testemunhei outras vezes, registrava movimentação idêntica de pessoas indo e vindo nas dependências do terminal ferroviário. Não faltavam vendedores de frutas e outras coisas.

Com o tempo, finalmente compreendi que a passagem do Trem Azul pelo distrito tinha forte conotação festiva, simbolizando acontecimento aguardado pela comunidade. Explicava-se assim a presença maciça de tantos madrugadores.

No geral, o trem não ficava parado em Pires por mais de 15 minutos, tempo suficiente para alguém desembarcar ou embarcar. Logo, a locomotiva apitava desejo de sequenciar marcha sacolejante…

PORTADORES APENAS de bilhetes na terceira classe {vagão cadeiras de pau, conforme dizíamos}, nosso sonho era viajar de forma mais confortável, ou seja, no carro poltrona-leito. Aqueles assentos reclináveis, de espuma farta, incitavam devaneios sonolentos…

– Hoje, João, nós vamos de poltrona-leito – informou o mano, ar vitorioso. Desconfiei disso. Senti malandragem no ar…

– Só precisamos ficar atentos ao conferente dos bilhetes (chefe do trem). Se ele aparecer, já saia rápido, vá para o vagão-restaurante…

###

O vagão poltrona-leito, na data em questão, dispunha de assentos vazios, um deles ofertando imensa janela paisagística. Foi pra lá que carreguei minha mochila após indicação do mano, esticando o pescoço à imensidão do agreste orvalhado.

– Dá licença, rapazinho… – disse educadamente uma moça linda, cujo perfume inebriou os meus sentidos, ocasionando arrepios prazerosos.

Ela usava um vestido curto, e foi inevitável não observar seu corpo perfeito se acomodando a meu lado. Expunha toda a sutileza feminina; pele alva, delicada, cabelos fartos…

Tudo naquela jovem parecia bem especial, capaz de nos fazer felizes.

A mesma voz meiga me explicou que o assento da janela estava disponível, mas ela pretendia continuar na poltrona do corredor.

– Venho de Belo Horizonte e, até agora, ninguém ocupou esse assento… – comentou sem importância, a título de “pode-ficar-se-quiser”.

Em outras palavras, eu poderia permanecer refestelado a seu lado. Que ótimo! Só se o dono do assento aparecesse no restante da viagem…

Já acomodada, a moça abriu os lábios num sorriso que me deixou duplamente embasbacado, expondo dentes alvíssimos. Total perfeição humana…

Nunca uma viagem de retorno a Montes Claros parecera tão interessante! Cataloguei-a imediatamente como inesquecível!

O máximo é que, mesmo com passagem de terceira classe, eu viajaria agora no vagão poltrona-leito, coladinho a uma musa!

A moça não tirava seus olhos penetrantes dos meus, talvez inquirindo se estava bem consciente das regras. Ou seja: eu só poderia ficar ali enquanto ninguém exigisse aquele lugar.

Tentei não me perturbar diante do seu olhar perscrutador, e forcei uma naturalidade atenciosa, claramente teatral.

O trem apitou sonoramente por duas vezes, e alguns solavancos indicaram o reinício da viagem. Ufa!

Esbocei apenas um sorriso tímido, de agradecimento, à gentileza da desconhecida, e fingi duplicar o interesse pelo desfile da paisagem campestre, cada vez mais rápida. Não tinha ideia da real velocidade de um trem…

– Então… Você parece ser um menino inteligente, além de bonito. Deve estar estudando, mora com seus pais, quer ser doutor, imagino… – tentou entabular conversa.

Engoli em seco, sem saber as respostas exatas. Só tinha oito anos, acho que ela nem percebera…

Meu mano, a metros dali, observou divertido tal cena. A moça, sem tirar seus olhos castanhos dos meus, queria saber de tudo! Se não fosse tão linda, seria uma chata…

Não demorou a inquirir minha idade, ainda bem. Respondi que completaria nove anos em julho próximo. Quis saber o dia, se já programara festa, presentes, e tudo o mais…

– Ah, então está na idade de namorar e casar! Eu estou procurando um noivo que nem você! – disse ela, empostando seriedade irônica.

Não consegui dizer nada, encabulado. Creio que percebeu meu constrangimento…

– Mas podemos nos casar no seu aniversário! Afinal, você é quem decide… Eu quero me casar logo! – voltou a sublinhar.

– Não sei…- foram as palavras que balbuciei, francamente apavorado. Casar antes de completar nove anos…

– Coma esses biscoitos de queijo, são deliciosos, anjinho! Precisa estar bem forte pra casar! Vamos ser muito felizes juntos, eu garanto! Só me separo de você quando morrer!

Pelo jeito, a desconhecida queria mesmo casar, diacho! Devia ter escolhido meu mano mais velho, estava pertinho dela…

Comi dois biscoitos sem me atrever a fitá-la, ainda fingindo interesse na mata rala, de planícies baixas, cortadas sofregamente pela composição. A moça continuou a falar…

– Vou construir uma casinha no alto de algum morro daqui. Aquele lá, ao longe (apontou) parece bem legal…

Nem respondi, e relanceei novo olhar desconfiado.

– Agora, se preferir morar na cidade, não tem problema, vamos erguer nossa casinha num bairro aconchegante! Pode até ser de palha, idêntica à primeira construída pelos Três Porquinhos. A gente vai combinando…

Uma conversa dessas, logo nas primeiras horas da manhã, e eu ali, meio que acuado, na condição de clandestino de vagão de luxo; complicado demais!

O chefe do trem veio em passos lentos, pedindo passagens, e eu quis vazar urgentemente, mas a moça cochichou pra ficar tranquilo, quietinho na janela.

– Não diga nada, deixe comigo…

Percebi que ela compreendera minha situação de passageiro das cadeiras de pau…

De olho comprido no chefe do trem, pernas trêmulas, nem tinha ideia de como explicar estar no vagão poltrona-leito com bilhete da terceira classe. Meu mano saíra de mansinho, nem vi…

– Eis o meu bilhete. O dele, desse menininho lindo aqui – apontou pra mim –  está na bolsa da mãe. Ela foi no vagão restaurante buscar café, deve voltar em minutos…

Apressado, o homem apenas picotou o bilhete dela, ignorando-me por completo. E saiu pedindo passagens em tom indiferente. Os que dormiam placidamente não disfarçaram a irritação da quebra de sono…

– Quando chegar em Montes Claros, vou providenciar seu terno de casamento, meu lindinho! Nosso noivado vai ser rápido, e vamos nos casar em poucos dias! – anunciou triunfante.

Mordisquei uns pedaços de pão de queijo, sentindo ter entrado numa fria: aquela moça não desistia fácil…

Para piorar, meu mano retornou ao vagão de repente, e ela contou que noivara comigo. O mano desandou a rir, enquanto eu tentei forçar os beiços num sorriso maroto, a fim de não parecer palhaço tonto.

– Você está convidado, desde já, para ser o nosso padrinho, cunhado! Seu irmãozinho quer se casar ao desembarcamos em Montes Claros!

Ih, a conversa dela ia mudando a cada hora, e essa de dizer agora que o desembarque próximo já implicaria em matrimônio, foi demais!

Mal o trem cruzou a região do bairro São Judas Tadeu, refreando a marcha nas proximidades da estação de Montes Claros, eu pedi licença emergencial, apontando os sanitários.

– Estamos chegando! Deixe para ir ao banheiro do hotel, após o casamento – comentou a moça atrevida, em pose de seriedade máxima.

– Estou apertado pro xixi, não aguento esperar mais, senhora! – disse humildemente, ao quase saltar sobre ela.

– Tudo bem, noivinho, tudo bem… Só não me chame de senhora, mas de noiva! Vou esperá-lo aqui! Diga pro seu irmão que você agora é um homem sério, a caminho do altar. Não vai voltar mais pra casa com ele nunca mais: vai ficar comigo pra sempre!

Ao ouvir aquilo, momento em que ela me segurou suavemente pelo braço, empreendi uma espécie de arranque e quase tropecei no corredor do vagão poltrona-leito, ao abrir fuga esbaforida.

EU E O MANO ZÉ nem nos acomodamos nas cadeiras de pau, do paupérrimo terceira classe, mas na mesa do vagão-restaurante, a fim de aguardar o desfecho da viagem.

Não tardou e repetitivos sibilados rangentes indicaram que o maquinista acionara os freios do trem, em face da proximidade da estação. Foi um bálsamo visualizar os conhecidos arredores do bairro Morrinhos, vizinho ao terminal ferroviário…

No ato do desembarque do Trem Azul, agradeci a Deus pela serena viagem proporcionada a todos nós.

– Vamos, logo, Zé Antônio! Mãe tá esperando, cara! – cutuquei o mano ao sairmos da estação, intuindo alcançar segura liberdade.

Enquanto andamos pela plataforma, e até mesmo fora da estação, não parei de olhar detidamente em todas as direções. Se acaso aquela “noiva” surgisse cobrando casamento, aí, sim, seria uma outra carreira longa, desta vez pelas ruas da cidade…

Por sorte, minha mãe nos aguardava na pracinha em frente à estação, e o amigo taxista do pai nos transportou comodamente em seu Chevrolet vermelho, rádio entoando músicas clássicas.

Ciente do meu medo, o mano informou à minha mãe que eu noivara dentro do trem.

– Que bom, filho! Vai casar tão novinho! – brincou ela.

Foram palavras nada tranquilizadoras. Mesmo porque, enquanto o táxi tamborilou pelas ruas de paralelepípedos da principal avenida de acesso à estação ferroviária, eu não parei de olhar pra trás: o temor era de que a bela “noiva” nos seguisse até em casa…

Por João Carlos de Queiroz, jornalista

*Baseado em fato real.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Comentários estão fechados.