A minha tarde no telhado do amor…
Faz já um punhado de anos, mas jamais esqueci aquela tarde um tanto quanto fria para o mês de agosto, seca ao extremo. Fiquei um tempão em cima do telhado frágil da velha casa em que moramos na Vila Ipê, na década de 70, praticamente uma chácara. Os muros altos que a ladeavam impediam que olhares curiosos invadissem nossa intimidade.
À primeira vista, o lugar se apresentou receptivo, ainda que guardasse segredos terríveis, inclusive de assombrações. Vivi lá dias terríveis, de medo noturno e também diurno. E também curti lá meus tempos mais importantes de paixão, quando senti o coração bater tresloucado ao pensar na menina conquistada a duras penas, fruto de sonhos cálidos, intermináveis…
O problema é que minha musa bateu asas, foi se aconchegar em outro ninho amoroso, deixando-me na maior fossa. Antes que me qualifiquem de chifrudo, o rompimento já acontecera meses antes, articulado mesquinhamente por seus irmãos.
Mesmo após tantos anos, décadas, minha mágoa ainda não se desfez. Qualifico-os de crápulas da foice, pois degolaram minha felicidade de forma calculista, fria, à base de artimanhas mesquinhas. Fui, inclusive, tachado de maconheiro, pelo fato de ser motoqueiro e ter amigos chegados na erva.
E agora, machucado interiormente, lá estava aconchegado em cima do telhado decrépito. As telhas estalavam velhice comprometedora, e nem sei por qual motivo subi ali, tentando algum bálsamo para o coração amargurado. Afinal, naquela tarde minha musa oficializara matrimônio, e saí insosso pela cidade, só pensando em como poderia ter algum suspiro de alívio.
Preocupada comigo, a amiga Lourdes, diarista, perguntou se precisava de algo. Disse isso após escutar estalos comprometedores das telhas que pisei com cuidado para chegar ao cume da casa, em formato de V. Acaso me descuidasse, poderia quebrá-las, abrindo rombos memoráveis pela casa inteira.
Sentado de forma pretensiosamente meditativa, refleti sobre o passado, presente, futuro, e deduzi que nada fazia sentido sem ela comigo. O coração acelerou forte por várias vezes, e até consegui ver a imagem da amada no opaco entardecer adiante, em que se misturavam raios solares e sombras da noite chegante.
– Desce daí, menino! Já vai anoitecer, desce logo! – gritou Lourdes. Ela realmente se preocupava comigo, e foi muito difícil empreender o primeiro gesto para abandonar o posto de sentinela da própria fossa. Fui descendo devagar, e estalos fortes indicaram que trinquei umas duas telhas, no mínimo. Como não estávamos no período das águas, não havia risco de goteiras próximas…
Lourdes, com olhar sarcástico, posicionou-se de braços cruzados na varanda, ao lado da escadinha que usei para subir no telhado. Não disse nada quando a olhei frente a frente, apenas sorriu de forma velada, meio cúmplice. Pensava tê-la enganado, pois não comentara nada do que vinha sentindo nos últimos dias. Mas Lourdes, apesar de nova, cerca de 37 anos, tinha muita vivacidade, captava tudo no ar.
– Então, rapazinho, você está apaixonado, perdeu a pombinha, pelo visto… Devia chorar alto, ao invés de ficar subindo nesse telhado velho. Poderia cair, quebrar perna, braço, ou algo pior…
Fingi não escutar nada, e entrei na casa perguntando sobre o cardápio da janta. Lourdes voltou a sorrir maliciosamente ao responder.
– Tem coração de franguinho ao molho, quase desmanchando. Não sei se vai gostar…
AINDA lembrando da tarde crepuscular triste que acompanhei no telhado da casa da chácara, permiti que uma ducha de água fria espantasse minhas tristezas, proporcionando saudável choque de realidade. Nem queria imaginar os acontecimentos a seguir, na intimidade da musa ao lado de alguém imposto pela família de sacanas. E pensar que me esforcei ao extremo para agradar esses Judas…
Por João Carlos de Queiroz, jornalista.
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