A fantasminha camarada da casa velha…

BOCAIÚVA-MG – Tia Laura Queiroz sempre gostou de morar em casas antigas e espaçosas. Nunca escondeu se sentir desconfortável em espaços exíguos, independentemente da idade dos imóveis alugados. Sua exigência básica, ao fechar algum contrato, era por generosos espaços internos e externos.

Se a casa em questão dispusesse de despensa, melhor ainda: local destinado a guardar mantimentos e guloseimas. Aí se incluía seus famosos doces de mamão e goiaba. Também nunca faltava rapadura e requeijão, elementos imprescindíveis no café matutino e vespertino.

Sistemática, a tia chegou a adquirir uma casa próxima à Escola Normal de Bocaiúva, mas se desfez dela em pouco tempo. Motivo: “muito apertada”.

Dormíamos lá (eu e os primos) num anexo de madeira, localizado mais ao fundo de um terreno irregular, compactado por mantas empedradas. Nos meses de inverno, faltavam cobertores para aguentar o frio desse dormitório. O suplício friorento começava antes das 21h, horário padrão de todos se recolherem.

Pelas frestas de madeira, o inoportuno vento sibilante parecia dizer: “Vou atormentar o sono de vocês”. A ponta do nariz – ao aproar vez ou outra pra respirar – retornava gelada ao refúgio dos cobertores.

Até que eu gostava de pernoitar nessa espécie de estábulo, pela proximidade da mata. Inesquecível acordar ao som da passarada silvestre e galinhas de angola saudando os raios solares…

Fiquei triste quando soube que a tia vendeu a casa e se mudou para a área central da cidade. A partir daí, ela passou a não parar muito nos endereços, mudando-se frequentemente, processo nômade.

Foi assim que tia Laura aportou como nova moradora da Praça Alckmin, residindo num casarão de paredes grossas. Ali, devia estar acumulado boa centena de anos…

Vários das casas em que residiu ostentavam jardins e quintais ensombrados, repletos de frutíferas: pés de manga, caju, laranja, maracujá, goiaba, cajá, mamão, etc.

Nesses ambientes, a tia se dedicava a podar e cultivar hortaliças. Infelizmente, a imposição da idade enfraqueceu seu corpo e ânimos; dormir, por conseguinte, se tornou passatempo ininterrupto.

Uma outra mania da tia era criar galinhas caipiras: enquanto não chegava o domingo, as aves ficavam trancadas em lugar sombreado, com água e milho à vontade. Aos domingos, a tia recebia parentes desejosos de almoço suculento…

Eu nem gostava de ir ao quintal, pois sabia que ali estavam dóceis prisioneiras, destinadas à panela dominical.

As galinhas pareciam entender minha consternação ao cruel destino que as aguardava: bastava me aproximar da gaiola para emitirem piados tímidos.

Sempre entendi aquilo como um pedido de socorro. Mas… ai de mim se soltasse alguma ave…

Já no dia seguinte, segunda-feira, magicamente já não havia galinhas nas gaiolas, apenas penas e sangue na terra fofa bem próximo…

Ela ainda costumava se gabar de ser imbatível na cozinha. Por conhecer o tempero das demais irmãs, preferia ficar calado. De fato, cozinhava de forma excelente!

Tia Laura nunca se importou em residir em casas que sediaram tragédias distintas (assassinatos, suicídios, mortes dolorosas por doenças). Bem-humorada, tia Laura afirmava que defunto é insumo da terra. “Desceu a sete palmos, descansou pra sempre!”

Tanto é verdade que, anos atrás, ela alugou um imóvel onde funcionou agitada clínica cirúrgica, unidade desativada recentemente. Quem esteve lá com ela, antes da mudança, disse que o odor nauseante de álcool e éter ainda infestava o ambiente…

Animada, a tia escolheu justamente a sala de cirurgia para montar seu quarto. Contou ter tido noites esplêndidas de sono no aconchego da sua enorme cama de casal. Nem atentou para a quantidade de corpos sem vida que saíram dali…

Conhecedora do meu lado medroso, ela achou graça quando recusei seu convite de pernoite. Até analisei tal possiblidade, desfeita depois de ver uma menininha magrela correndo pelos corredores da casa.

Brincalhona, a criança ficou acenando os bracinhos ao fundo do corredor. Certamente, queria que fosse lá…

– Devia ter chamado ela, João. De repente, só queria conversar um pouco… – comentou a tia, segurando o riso.

Deixei a sombria residência pensando em não voltar lá nunca mais, ainda abalado pela imagem da criança malina saltitando pelos corredores. Não dava pra entender a mínima animosidade feliz num imóvel tão sinistro…

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Só voltei a me hospedar com tia Laura após ela se mudar desse imóvel fantasmagórico. Nem passei mais em frente, temendo que a misteriosa menininha surgisse na janela…

João Carlos de Queiroz, jornalista

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