A casa velha das tias bocaiuvenses…

Minhas tias Antonina e Júlia marcaram muito minha infância: mesmo autoritárias, eu tinha verdadeira paixão por elas, visitando-as sempre. Horas essencialmente prazerosas. A casa em que residiam se tornou rota obrigatória quando aportava em férias em Bocaiúva, terra natal do meu pai, Carlos Petronilho...

Por João Carlos de Queiroz – Ao transitar hoje rumo ao serviço, detive-me numa rotária da principal avenida de Cuiabá. Momento em que meus pensamentos aterrissaram em Bocaiúva, mais precisamente na casa velha das bondosas tias Antonina e Júlia….

Bocaiúva, devo citar, já foi cidade rival de Montes Claros. Contudo, parece que uma boa convivência de proximidade foi acertada entre elas…

Na casa também morava também “seo” Lu (Luiz Zacharias Araújo), ex-juiz de Paz. Mais parecia uma alma penada naqueles cômodos, totalmente submisso à esposa Antonina. A tia, apesar de adorável, era uma mulher mandona, de personalidade forte.

De forma servil, “seo” Lu estava sempre a postos para acatar as ordens da exigente patroa, realizando serviços gerais na casa: consertava cadeiras, mesas, portas, etc.

Eu tinha pena dele, principalmente em função da idade avançada; parecia um cordeirinho encurralado pelas broncas ininterruptas da tia.  Tanto que arregalava os olhos de medo quando ela berrava sem pudor:“SEO” LUUUUUU!”

Olhar bondoso, “seo” Lu evitava fitar as pupilas enfurecidas da companheira, dilatadas em dobro pelas lentes “fundo de garrafa” dos óculos.

 – Vai na padaria buscar pão, homem! – ordenava a autoritária tia no seu posto predileto, a enfumaçada cozinha. Foi construída num patamar inferior à espaçosa sala de estar da casa, acessada por pequena escada. O menor tropeço naquela escadinha significava queda perigosa, talvez letal…

Tia Antonina batia ponto plantonista por ali desde às 5h. Nunca entendi o motivo de tanta adoração pela apertada cozinha: mal conseguia ver a tia direito em meio àquela fumaça intermitente do fogão a lenha. Dessa cozinha saíam pratos salgados e doces simplesmente deliciosos! O pé de moleque era imperdível…

Ela e tia Júlia ainda achavam tempo para cuidar de afazeres religiosos, auxiliando na decoração e eventos da Igreja do Senhor do Bonfim. Ao ir ao tempo, as irmãs cobriam o rosto com um véu branco, simbolizando pureza.  Lá, na igreja, a palavra de tia Antonina, inegável líder, tinha poder de decisão.

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A austera casa das tias {demolida há anos} ficava próxima à antiga Igreja Senhor do Bonfim, igualmente inexistente há décadas, quando foi substituída por um templo mais moderno.

Na sala de jantar, onde o corredor principal desembocava, chamava a atenção um relógio enorme dependurado na parede. Ele badalava de hora em hora, exibindo inquieto cuco. As badaladas emitiam ecos sinistros (blam… blam… blam…) Eu imaginava o incômodo de calafrios que seria escutar aquilo madrugada adentro…

Havia nessa sala uma impecável pia, lavadouro adornado por saboneteira suspensa e toalhas felpudas, geralmente de cor rosa. Eu gostava de lavar as mãos ali apenas pelo prazer de ser acariciado por aquelas toalhas.

Também gostava muito do cheiro mofado de madeira velha e o barulho plact, plact que se desprendia do tablado do corredor. “Pare de saracotear nesse corredor, menino! Vai brincar no pomar!”, recriminava tia Júlia, mais comedida nas broncas às crianças peraltas da família.

Tia Júlia não pintava seus cabelos fartos e de branco reluzente. Já os da irmã carrancuda, exibiam preto sedoso, à força de tinta, primorosamente presos numa touca.

Logo à entrada da casa, “seo” Lu mantinha “escritório/cartório” de juiz de Paz, igualmente no estilo centenário do restante do imóvel. Por décadas, vários casamentos se consumaram nesse recinto sob seu comando. Houve quem confundisse “seo” Lu com padre em função da serenidade dos gestos e fala macia. Descobri que conversava frouxo por falta de dentes ao vê-lo chupar uma laranja…

Um sítio pra lá de sem-graça…

Nos anos de idade avançada de “seo” Lu, esse pequeno cartório foi transformado numa marcenaria. Incentivado {“à força”} pela esposa Antonina, o ex-juiz de Paz passou a construir cadeiras de tela e outros objetos domésticos. “Tem que fazer alguma coisa pra não ficar de papo pro ar o tempo todo”, dizia a tia.

“Seo” Lu possuía um Jipe 54, substituído depois por uma Rural. Veículos que nos levavam ao seu sítio, situado no miolo da serra de Bocaiúva, Br-135, estrada velha, trecho íngreme, cascalhado.

Na realidade, íamos até lá somente para apreciar o passeio de carro, pois o sítio não tinha nenhum atrativo à criançada (eu e os primos).  O pomar se resumia a poucos pés de banana, e o terreno árido denotava que pouca coisa poderia ser cultivada na área. “Seo” Lu observava a paisagem serrana com ar lânguido por algum tempo antes de nos chamar. “Vamos, vamos, crianças, que a tia deve estar com o jantar pronto”.

Nesse convívio de anos na casa das tia, presenciei “seo” Lu devorar bifes crus e sem nenhum tempero, amaciados numa tábua com a boca de garrafa.  Se algum caquinho ficasse impregnado ali…

Tia Antonina se acostumara com esse costume do companheiro, tachando-o simplesmente de “coisa nojenta”. Incrível o olhar feliz que o aposentado fazia ao engolir os pedaços de carne crua…

A doce Chica: alienação mental e vida sofrida

Quando digo que moravam nessa casa as duas tias e “seo” Lu, propositalmente omiti a presença de Chica, portadora de grave retardamento mental. Chica vivia num quartinho do quintal; não tinha permissão de acesso direto aos cômodos da casa em nenhum momento, tampouco em datas especiais (Natal, Ano Novo). Seu sanitário particular era uma “casinha” de fossa, mais além da cisterna. Exalava odor fétido a metros…

Compadecido, eu frequentava o quintal mais para fazer companhia à pobre criatura. Chica me olhava como se não estivesse me enxergando; olhar bamboleante e sem nexo, perdido em pensamentos confusos…

O ponto principal de trabalho de Chica era nas imediações da cisterna. “Traga logo um balde d’água, Chica!, gritava a tia. E lá ia a pobre Chica jogar o balde no poço, puxando-o penosamente pela corda até à borda. Tentei ajudá-la algumas vezes, mas o balde cheio era pesado demais para mim.

Por vezes, talvez querendo ser simpática, Chica tentou entabular diálogo comigo, mas só conseguiu emitir palavras sem nexo, sílabas imprecisas. Ocasiões em que balbuciava nervosamente um emaranhado de sons roufenhos, perdendo-se nas próprias tentativas…

Eu fingia entender, para ser educado e balançava a cabeça afirmativamente. Chica devia perscrutar os meus pensamentos de alguma forma: fitava-me curiosa, e saía depois Saía depois de mansinho, sorriso sem-graça, arrastando o corpo desengonçado…

Esse olhar perdido de Chica só se desfazia abruptamente ao ouvir os berros nervosos da sua mãe adotiva: “Deixe de moleza, Chica! Traga mais água, estou precisando!”

Mesmo sem olhar, já sabia que tia Antonina estava postada no alto da escada que demandava para o quintal. Aí, arfante, Chica levava o balde até lá. Algumas ocasiões foi auxiliada por “seo” Lu…

Do pomar, a visão diminuta do paraíso…

No quintal principal da casa (não o anexo ao pomar) existia um porão misterioso. Sempre quis entrar lá, sendo impedido pelo medo. “Vai que tem fantasmas aí dentro”, pensei um sem número de vezes diante da rústica portinhola. Chica sempre observava curiosa meus movimentos de criança desbravadora de quintal, parecendo se divertir…

Quanto ao pomar das tias, dividido por um segundo quintal, esse vivia na base de tranca, vigiado por todos. Na realidade, esse pomar delimitava a cidade e o meio rural, pois não havia nenhuma casa depois dele, apenas um cenário tentador de planície verde…

Por ser um pomar tão proibido, sempre com cadeado, eu tinha especial predileção pelo lugar. Não demorei a descobrir o esconderijo da chave do imenso cadeado, e aproveitava a menor distração das tias para adentrar nesse paraíso de frutíferas.

Só saía dali correndo ao escutar a tia perguntando a Chica sobre o meu paradeiro. “Cadê meu sobrinho, Chica?” Cúmplice, Chica fingia não saber, liberando mais sorrisos sem sal. Foi aí que deduzi que ela não era assim tão alienada…

 

Os fundos do pomar descortinavam uma pradaria de acesso à linha do trem, comboios que passavam truculentos durante a madrugada e ao entardecer. Logrei assistir, do alto das frutíferas, o desfile gracioso dos vagões e o matraqueado sincronizado das rodas de aço naquele cenário de verde sem fim, divagando qual seria o destino daquela centopeia gigante e seus buzinaços estridentes…

São recordações que volta e meia me assaltam repentinamente hoje em dia. Ao menor vacilo, navego sonhador aos meus tempos de infância e adolescência, e as regiões mineiras e as pessoas com as quais convivi sempre conseguem trazer prazeroso acalento à alma solitária.

*As tias (Antonina, Júlia e “seo” Lu faleceram há décadas. Chica, hoje bem idosa, mora com tia Auta, coincidentemente ao lado da casa onde viveu durante anos. Desde a partida das tias, é fato, ela desfruta de uma vida bem melhor, já desfeita da cruel obrigação de baldear água e permanecer apenas no quintal, como se fosse um animal doméstico. 

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