A casa de uma inesquecível festa junina no Santos Reis…
Montes Claros-MG – Em meados dos anos 70, fui convidado para uma festa junina na popular Malhada, bairro Santos Reis. O lugar me inspirava curiosidade há tempos, sendo trajeto de passeios ao cume do Morro do Frade e incursões frequentes pelas imediações.
Também por lá, em pedaladas calorentas por estrada cascalhada, eu e alguns amigos, integrantes da turma da pracinha da Matriz, fomos muitas vezes à Lapa Grande. Esse trajeto exigia alguma resistência física, e toda vez parávamos nos riachos do caminho para esfriar os corpos suados. Nem dava vontade de prosseguir viagem…
Já motoqueiro, pilotando garboso minha Yamaha Mini Enduro, a GT 50 cilindradas, nem sei quem me convidou para participar de evento junino na casa de um parente, morador antigo do Santos Reis. Mas bastava falar em festa caipira para que ficasse bem animado, e não raramente, entre junho e julho, percorria a cidade à procura de algumas.
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Cheguei bem cedo ao endereço no Santos Reis, acho até que cedo demais, pois havia poucas pessoas no quintal. Dezenas de cadeiras solitárias se espalhavam pela área, e também no corredor da entrada da casa.
Impressionou-me as cores azul e branca da pintura da casa, bem fortes e aparentando estar frescas. O branco lembrava um véu de noiva, enquanto o azul se associava ao firmamento celestial. O dono daquela casa tinha bom gosto, sem dúvida. Lá estava uma dupla de cores bem harmônica!
Um detalhe que não passou despercebido era a ausência de música, visto que festas juninas precisam ser agitadas com forró. As pessoas também não se mostravam muito entusiasmadas, conversando baixinho, quase cochichando. Comecei a achar aquele lugar meio esquisito…
Mesmo depois de estar lá, por mais de 20 minutos, não vi a cara do anfitrião, ou anfitriã. Conforme citei, nem sei quem me convidou, mas estava firme para festar por horas, sem previsão de término…
Aos poucos, antes mesmo das 20h, a casa foi enchendo de gente estranha, uns sorridentes, outros sérios, quase carrancudos.
Uma mulher de cara variolada me olhou de soslaio quando entrou, e imaginei que estivesse me xingando mentalmente. Ela caminhou pesadamente rumo à cozinha, detendo-se para conversar com suposta amiga. Não esboçaram nenhuma animosidade festiva, sequer sorrisos de alegria pelo reencontro.
Em dado instante, ambas voltearam olhares mórbidos em minha direção. Aquilo me trouxe certo mal-estar, e fez com que me sentisse intruso, mesmo sendo convidado.
Outros chegaram, jovens, crianças, adolescentes, e a coisa começou a ficar animada, do jeito que eu queria. Um rapaz se sentou diante de mim num banco de madeira surrado pelo tempo, e perguntou se queria quentão. Respondi que preferia ponche, se tivessem, claro.
Solícito, ele se dirigiu lá pra dentro (parecia ser íntimo da família) e voltou com a bebida, além de tira-gosto conhecido por “sacanagem” (salame, azeitona, queijo e… pimenta).
Alguém resolveu colocar uma música caipira, e concluí que a festa realmente estava sendo iniciada. Logo acenderam uma pequena fogueira mais ao fundo do quintal, e de lá vinha sempre milho assado e batata doce, servidos aos gulosos convivas.
Perto da meia-noite, fomos convocados para cantar parabéns. Somente então caí a ficha: além de festa junina, alguém emplacava anos na data. Quem, não sabia…
O jeito foi acompanhar a fila de convidados casa adentro, posicionando-me ao lado da mesa. O ponche insistia em fazer efeito, deixando tudo meio turvo. As vozes se tornavam cada vez mais distantes…
– Parabéns pra você, nesta data querida! – cantaram. Eu acompanhei, claro, nem sentindo a palma das minhas mãos se chocarem ininterruptamente.
A mesa em que nos agrupamos apresentava uma legião de pratos dignos de palmas de qualquer chef, incluindo doces (pé de moleque, canjica, etc.). Banquete de aniversário pra ninguém colocar defeito!
Os convidados bateram tantas palmas que a casa inteira tremeu, certamente contentes por presenciar tanta fartura gastronômica. Seria um jantar e tanto!
Meu blusão motoqueiro tinha zíper que costumava grudar fácil em qualquer coisa, e nem percebi quando a parte inferior se acoplou firmemente à toalha de xadrez, enroscando-se fácil no tecido de lã.
Pra piorar, o tal ponche deixara grogue meu controle de ponderação, e isso ficou explícito ao ouvir o conselho de uma senhora, cochichado às pressas: “Pare de beber, menino! Você já está bambeando as pernas!”
Foi um providencial puxão de orelhas para que não abastecesse mais meu copo de ponche. Também, por que cargas d’água precisavam escancarar aquele pote irresistível de forma tão visível? Uma delícia mastigar os pedacinhos “alcoolizados” de maçã…
Resolvi não beber mais ponche, e apenas entornei o restante do copo, que, por sinal, estava quase cheio, em face da recente reabastecida. A vista ficou ainda mais turva, recomendando debandada estratégica: já não descartava cometer alguma gafe imperdoável…
Naquele jeitão tímido, de mineiro que não quer incomodar, acenei de forma geral para agradecer a simpática acolhida (acho…), e fui saindo de mansinho da sala… No entanto, ao ensaiar os primeiros passos, senti um peso enorme travar minhas pernas. Devia estar muito bêbado!
Muitos gritaram alarmados para que parasse, avisos que não entendi: só queria ir embora. Povo esquisito, sô!
Insisti em avançar, tentativa inútil: uma barulheira sequencial ecoou logo atrás de mim. Meu olhar apático, de quem só quer cama pra refestelar seu corpo bebum, pôde ver panelas, pratos, copos, tigelas com doces e garrafas de vinho pelo chão. Tudo despencou da mesa! O maldito zíper do blusão motoqueiro aprontara feio…
Houve uma alma caridosa que desvencilhou meu zíper da toalha de tricô-xadrez e me guiou até à saída, enquanto ouvia vaias e xingamentos raivosos. Tantas pessoas torcendo por um jantar maravilhoso e eu estraguei tudo…
Assim como não sei até hoje quem me convidou para essa festa, também nem procurei saber, nos dias seguintes, qual foi a reação dos festeiros ao ficarem sem provar tantas guloseimas.
Ainda bem que na casa tinha cães e gatos, que acorreram afoitos para pegar tudo que caiu da mesa. A imagem de um bichano correndo com uma coxa de frango nunca saiu da minha cabeça…
Por João Carlos de Queiroz, jornalista
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