Ao chegar à pensão, pela primeira vez a recepcionista levantou os olhos por cima dos óculos de armação barata, lentes de fundo de garrafa, e inquiriu se aquilo que levava era uma foice. Só balancei positivamente a cabeça, marchando firme pelo corredor, foice apoiada nas costas, e com a inegável a sensação de estar sendo observado.
Girei a chave na fechadura e a porta do quarto emitiu rangidos de veeira brava. Pelo visto, reparos passavam ao largo dos interesses daquela mulher..Ao invés de bisbilhotar a vida alheia, o ideal seria que direcionasse mais atenção ao seu comércio, em visível cacarecos…
Antes de entrar no quarto, relancei olhar à portaria, flagrando-a ainda me observando. Sorrateira, ela desviou o olhar para ajeitar os óculos, fingindo estar novamente entretida em fazer anotações na velha caderneta de segredos. Agora, até eu desejava saber quais anotações importantes registrava ali…
Já acomodado, senti-me mais confortável pela presença da foice, cujo corte o vendedor anunciara ser idêntico ao de uma navalha. “Que venha então a bruxa! Ou bruxas, bruxos! Há foiçadas para todos eles!”, balbuciei raivoso.
Descartei tirar uma soneca antes do jantar, apenas dando trégua de relaxamento no quarto. O dia demoraria a terminar, tinha chão de horas até à noite…
Sem precisar o horário, vi-me novamente andando pelas ruas de Pau D’Óleo, especialmente por um beco curvado, situado mais ao fundo, que desembocava numa mina d’água. Dali os moradores retiravam potes e potes de água todo santo dia, desfilando em procissão, baldes em equilíbrio duvidoso na cabeça. Nunca caíam, interessante…
Pensando nisso, ouvi risadas infantis, cristalinas. Um casal de crianças veio pulando em minha direção, aparentemente brincando de pega-ladrão, folguedo muito comum nessa época.
A menina, de uns seis anos, tropeçou numa pedra e quase caiu de cara, choramingando de dor ao ficar sentada no meio do caminho apertado.O olhar desesperançado da criança pedia consolo.
O menino, pouco mais velho, não foi nada solidário, zoando o tropeço da maninha, alguns metros adiante. Creio que ela devia ser mesmo sua irmã, a julgar pelos olhos azuis e idêntica tonalidade dos cabelos.
Auxilei a débil menina a se erguer, e seus olhinhos – marejados de lágrimas – emitiram brilho sincero de agradecimento.
Recomposta do susto, a menininha voltou a sair correndo beco acima atrás do presumível mano. Gritava alto, sem parar: “Você me paga!”
Assistir tal disputa me divertiu, e continuei descendo a viela rumo à bica, ou nascente, para melhor exemplificar. No trajeto, outras “equilibristas do balde” passaram a meu lado sem me cumprimentar, elegantemente determinadas a chegar ao topo do beco.
A última da fila chamou especialmente minha atenção: carregava um balde enorme, totalmente desproporcional ao tamanho das demais colegas. Uma mulher bonita, pude ver, pela silhueta esguia,cabelos soltos até à cintura, e roupas ciganas coloridas. Calçava sandálias trançadas.
Ela subiu sem se desconcentrar do rumo do trajeto, e desse modo impessoal cruzou comigo, inundando o espaço de perfume inebriante. Não entendi muito aquela associação de perfume com baldes d’água, suor trabalhador, etc… Miscelânea incógnita.
Extasiado pela beleza da cigana nordestina, detive os passos, a fim de deixá-la passar mais confortável. Alguns respingos fortes, seguidos de golfadas d´água expelidas pelo balde, em virtude do balanço do corpo sinuoso da mulher, lograram encharcar meu ombro e a perna direita.
Naturalmente, não fiquei ofendido pelo banho inusitado, mas vi nesse entrevero a possibilidade de estabelecer alguma conversa. Assim, ainda parado, direcionei-lhe semblante de quem foi surpreendido, praticamente uma advertência muda para ter cuidado. Não deu certo…
Impassível, a cigana em questão ignorou por completo o incômodo causado, dando continuidade ao seu andar bamboleante. Encharcado, com cara de pateta, reiniciei a descida. Ao voltear a cabeça, para rápida despedida à bela cigana que subia o beco, não a vi mais. Só se voou para chegar ao topo da viela…
LÁ EMBAIXO, aos pés da fonte, havia uma outra mulher agachada. Por estar com dois baldes, não levaria nenhum deles na cabeça, deduzi. De costas, parecia igualmente graciosa à cigana relâmpago de há pouco, a que sumira com balde e tudo pelo beco estreito e íngreme.
Porém, ao se virar para me olhar, e olhou estaticamente, assustei-me ao ver sua grande papada, idêntica à de papo de peru. Ela percebeu e sorriu silenciosamente, expondo gengivas salientes, escuras.
Depois, gritou nervosa para as crianças saírem da mata próxima. A menininha e o menino {que vira lá em cima do beco} surgiram na hora. Olhar obediente, sentaram-se num barranco próximo, aguardando novas instruções.
A mulher orientou para que ficassem ali enquanto ela enchia os baldes.. Nenhum das crianças me fitou, apesar de tê-los observado sem entender como poderiam estar lá em cima e, simultaneamente, em baixo. Talvez fosse um quarteto de gêmeos…
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PEDI à banguela para pegar um pouco de água, e então enchi uma garrafinha que trouxera. Deliciei-me ao senti o frescor do líquido da fonte, e a sede foi debandada, graças a Deus! Ninguém me falara sobre aquela fonte antes…
Ao terminar de beber, lá estava ela me olhando de forma estranha. Devo ter sorrido com vontade de perguntar qual era o motivo de tamanha curiosidade à minha pessoa. “Indo agora”, disse a título de despedida, já saindo de perto da fonte.
Uma outra curiosidade: ao chegar ao início da rampa [que denominavam de beco], repeti olhadela à fonte em que saciara minha sede, agora magicamente substituída por gruta imensa, entrada coberta de mato. Nem sinal da “mulher do papo de peru” e nem das crianças!
Aí, fôlego curto, garganta ardendo pelo esforço, empreendi corre-corre desengonçado para sair dali, ansioso em avistar as primeiras casas que antecediam a imersão naquele beco legitimamente encantado.
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– Se quiser jantar, ainda há tempo. Daqui a mais alguns minutos, tudo será fechado – alertou.
A voz inconfundível da gorducha da portaria foi misturada a insistentes batidas na porta do quarto. Não estava acostumado a jantar tão cedo, apenas à noite. Mas, antes que tudo ficasse escuro, pela interrupção da energia, levantei-me, jogando água fria no rosto para um despertar completo. Sonho esquisito, aquele do beco…
MANOEL DO VINTÉM, o Rei dos dos PF(s), informou que o prato do dia se resumia a arroz, feijão, batatinhas fritas, ovos e buchada de bode. Pedi que me servisse tudo, menos a buchada. Coitado dos bodes. Nunca provei dessa carne.
Pelo horário, mais das 18 horas, Pau D’Óleo já se movimentava ao contrário, ou seja, quase parando, com o comércio geral cerrando as portas. Nada de botecos abertos na noite escura. Sem falar da famosa bruxa que diziam andar pela área, terror dos moradores locais. .
Apressei as mastigadelas, nem recriminando Manoel do Vintém por ter encontrado dois mosquitos no arroz. Percebi, ao lado da mesa, que outros comensais retiravam coisas esquisitas do prato, necessariamente intrusos no pretensioso cardápio normal.
Um deles até exclamou ter encontrado uma lagartinha na salada. Manoel sorriu divertido ao escutar esse comentário, respondendo ser “bom para as vistas”. Inovou assim ao acrescentar outro produto no velho ditame popular de que “formigas são boas para as vistas”.
Terminei o jantar pela metade, enojado pelos mosquitos. Nem sei como ainda consegui ingerir algumas garfadas, depois disso. Agora, restava retornar à pensão e reiniciar nova batalha pelo sono; com ou sem bruxas.
O reconfortante era a presença da foice no meu quarto. Dessa vez, não ficaria recluso ao recinto do dormitório, indo averiguar qualquer coisa estranha que acontecesse.
– Não vá se esquecer de levar água para o quarto. A moringa está vazia, vi quando limpei tudo hoje lá pela manhã. Só que esqueci de encher, desculpe – disse a recepcionista.
Volta e meia ela arriscava conversa comigo. Mas, cá pra nós, que pessoa intragável!
Mais precavido, chequei se as pilhas novas funcionavam na minha lanterna, providencialmente retirada da bagagem. Nem imaginara que Pau D’Óleo fosse desprovida de energia em determinado horário noturno. Foco de velas não acua nenhuma bruxa; já o de lanterna…
Por João Carlos de Queiroz
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