Depois da viagem de trem, é hora do café no bule no sítio mineiro

Na antiga casinha rural dos tios Ambrósio e Nina, região do distrito bocaiuvense Engenheiro Pires e Albuquerque, as refeições se constituíam em momentos prazerosos...

Anos 60 – Vêm tomar café, meninos! – gritava a meiga tia Nina, timbre de voz levemente impaciente.
Mesmo ao longe, víamos sua figura emblemática postada na janela/porta da cozinha do sítio.
A idosa tia sempre mantinha um inquieto olhar de “varredura”, protegendo os olhos do sol vespertino com as mãos.
Por vezes, na hora do almoço, batia fortemente na panela com uma imensa colher.
Difícil também esquecer aquele cheirinho de pequi no ar, além do liberto alvoroço de galinhas de angola e patos ao redor da casa.
Volta e meia, a tia descartava farelo de arroz lavado no quintal, e as aves faziam festa…
Esse chamamento para o café – tão aguardado por todos – acontecia geralmente às 16h, ou 16h30, no máximo. Vínhamos então correndo; um a um, tomávamos assento à grande mesa escura da sala de jantar.
Tia Nina sabia agradar seus parentes, e caprichava nos bolos, biscoitos de goma e pão caseiro. Que delícia!
E com adoçante à base de rapadura, tudo estava perfeito nesse suculento café da tarde…
Tínhamos, ainda, outras iguarias disponíveis à mesa, a exemplo de requeijão, quitute produzido pelo primo Sebastião Pimenta (Nem), e tapioca amanteigada; uma das minhas prediletas…
No encerramento do café, após muito trololó dos primos, eu saía da mesa levando pedaços de rapadura de leite, a famosa puxa-puxa.
Assim, a hora do café no bule se tornou rotina inesquecível nos anos e décadas seguintes; retiro rural aconchegante.
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Vez ou outra, tia Nina também nos oferecia um leve lanche noturno. Recordo das mordidelas apressadas para aproveitar os estertores de luz das lamparinas, querosene já no fim…
Não poucas vezes, transitei pelos cômodos de chão batido da casa quase tateando, visto que a “nossa” lamparina já exaurira seu combustível fumacento.
Satisfeito pelo jantar, eu mal provava o leite e biscoitos. No máximo, comia uns dois, apenas, descartando o leite. Vai que bate diarreia madrugada…
Para complicar, a “casinha” ficava bem abaixo da casa. E em noites sem lua, era complicado ir lá…
Uma ocasião, voltei desse cubículo sanitário repleto de carrapatinhos. Tia Nina – rindo bastante – conseguiu arrancar todos. Isso não impediu irritação na pele, apaziguada por álcool curtido no fumo.
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Essa simplória rotina alimentar no rústico sítio de Pires foi uma das fases mais maravilhosas da minha vida.
Tia Nina também testava a nossa capacidade de ajudá-la, e ocasionalmente nos pedia buscar algum mantimento do outro lado do rio. Lá tinha de tudo: cachaça, pão, farinha, sal e biscoitos.
Desde que eu e o cavalo Passarinho despencamos dentro do rio, após deslize fenomenal barranco abaixo, nunca mais eu quis ir lá…
Um outro detalhe é que não achava certo cavalgar o amigo Passarinho, sentindo-me muito mal com isso. Mesmo sendo criança, o animal me olhava desapontado…
Na sequência desse tombo cinematográfico, seguindo-se muitas recusas veementes, o mano mais velho passou a cumprir tal função.
Compreensiva, tia Nina percebeu meu trauma, e minimizou minhas tarefas.
– Vai no paiol buscar ovos. Mas traga pelo menos uns 10, pois vou precisar para o bolo. Ah, já ia esquecendo: cuidado com a galinha chocadeira. Se ela arrepiar as penas, nem chegue perto…
Atento ao conselho da tia, evitei até de encarar a ranzinza ave. Só que ela se incomodou demais com minha presença no paiol, e com penas infladas saiu voando para me pegar. Que carreira empreendi!
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De todos os cafés da tarde nesse saudoso sítio de Pires e Albuquerque [distrito rebatizado de Alto Belo], os melhores momentos foram sob chuva torrencial; muita neblina pairando nas redondezas. Até frio bravo curti…
Entre uma degustação e outra nos quitutes vespertinos, ficava apreciando o lava forte do gramado frontal ao sítio.
Os açoites intermitentes da chuva na vegetação produziam soninho incontrolável, e então esticava meu corpinho no colchão de palha do quarto de hóspedes, lateral à diminuta sala de estar.
Meu mano Zé Antônio e o primo Vinícius logo faziam o mesmo…
– Acordem, meninos: é hora do jantar! – novo chamado da incansável tia Nina.
Sem dúvida, ela foi uma das parentes mais carinhosas da minha família paterna. Deus a acolheu há anos…
Por João Carlos de Queiroz, jornalista
OBS> Foto: este autor na fase criança. Ao fundo, o cavalo Passarinho.

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