Ciclismo madrugador nem sempre acaba bem…

No final dos anos 60, cismamos de viajar de bicicleta até Bocaiúva, cidade vizinha a Montes Claros-MG (percurso aproximado de uns 56 km). O problema começou pelo veto imposto por Notinha, minha mãe, que considerou esta aventura muito perigosa. Ela disse que a Br-135 (então cascalhada) se encontrava em obras de asfaltamento, com desvios e muita confusão de tratores. Nada disso nos esmoreceu.

Programamos a viagem para o próximo sábado, com saída estimada às 4h da manhã. Grupo composto pelo meu mano mais velho, Zé Antônio, primo Geraldo Vinícius dos Santos e Nivaldo ‘Bundinha’. O primo e Nivaldo foram dormir lá em casa, na Rua Cravina, bairro Edgar Pereira, ponto de partida…

Esperta, minha mãe desconfiou do nosso plano, indagando o motivo daquelas mochilas presas nas bicicletas (continham ferramentas, lanternas, farofa, etc.).  Alertou para aquietarmos o facho. Mesmo porque, disse, estava chovendo fraco. Clima frio…

Logo naquela noite foi chover, droga!

Fingimos concordar e fomos dormir. Às 3h30, decididos a enfrentar a chuvinha fina e gelada, abrimos a porta para cair no mundo, ou seja: na estrada rumo a Bocaiúva.

– Ah, seus malandrinhos desobedientes! Podem voltar já para o quarto! – gritou minha mãe.

Seu olhar indignado demonstrou que não brincava: ameaçou acionar meu pai e seu terrível cinto de couro.

– Querem que chame Carlos? Se ele acorda, a coisa vai ficar preta pra vocês!

Obedecemos, lógico, simulando ir dormir. Na verdade, para aguardar momento mais propício…

Lá pelas 5h30, já com os primeiros sinais do amanhecer, empreendemos a planejada fuga de viagem com sucesso. Minha mãe devia dormir placidamente, pois nem sinal dela ao abrirmos a porta.

Por temor de acordá-la, nem comemoramos. Saímos silenciosamente pelo portão, sob a cadência persistente de chuviscos gelados nos beliscando a face quente. Agora, era pedalar e pedalar…

Muito novo, creio com 11 anos, senti certo arrependimento nas proximidades do Batalhão da PMMG, sentindo o incômodo das roupas encharcadas e frio. E ainda nem começara nossa viagem direito: tínhamos uma serra íngreme pela frente e dezenas de quilômetros!

Por sorte, logramos conseguir carona nos caminhões carvoeiros que subiam vagarosamente a serra da Br-135. Só nos desgarramos das carrocerias dos chorosos Mercedes-Benz após o percurso ser vencido. O terreno quase plano favorecia pedalar sem esforço.

Uma vez que a chuva não dava trégua, meu mano sinalizou parada sob árvore frondoso de não sei o quê. Imaginei trégua na surra d’água que nos perseguia desde à saída. Mas aquele abrigo se revelou insuficiente para impedir o contínuo escalda corpo chuvoso.

Perto do tronco da árvore, logo descobrimos, caía menos água; ficamos os quatro espremidos ali.

A chuva diminuiu seu ritmo em 15 minutos, fato comemorado de modo exultante. Possibilitou, inclusive, abrir as mochilas e fazer lanche madrugador, reduzido a biscoito de goma, farofa de ovos e limonada. Banquete excelente!

– Vamos, pessoal, que Bocaiúva nos espera! – convidou o mano.

Mal disse isso, pegou sua bicicleta e saiu pedalando energicamente, sendo seguido pelo restante.

No comando da velha Caloi, busquei forças que não tinha, no intuito de pedalar no mesmo ritmo. Fomos gritando feito loucos pela estrada úmida!

Estava já começando a gostar daquele pique ciclístico quando minha corrente quebrou…

– Ei, gente, parem! – gritei para os vultos dispersos na cerração originária da chuva.

Todos voltaram, ainda bem…

– Foi sua corrente – sentenciou Vinícius. – Como remendá-la, não sei… Precisa de um pino novo; não trouxemos…

O mano levara uma cordinha, reforçada por cinto. Assim, fui rebocado até à Lagoinha, a alguns quilômetros à frente.

Chegamos lá com sol tímido, ouvindo galos e galinhas de angola saudando um novo dia, em conjunto com a passarada invisível. A orquestra sinfônica das matas é o máximo!

Entre as casinhas ainda fechadas da humilde comunidade, fomos informados por um vaqueiro madrugador que havia ‘consertador de bicicletas’ na área, não necessariamente uma oficina ciclística.

– Ele conserta de tudo: ventiladores, rádios, bicicletas, geladeiras… Mora lá naquela casa azul – apontou.

Dirigimo-nos à casa indicada, batendo forte nos janelões. Nada. Batemos mais vezes.

– Deve estar dormindo… – concluiu Nivaldo ‘Bundinha’.

Já íamos desistir quando uma das janelas foi aberta por um homem de meia-idade, barba por fazer e jeitão matreiro. Olhou-nos interrogativamente, antes de indagar:

– Pois não?!

Educadamente, pedimos desculpas por incomodá-lo tão cedo. E explicamos o caso da corrente rompida.

Ele ficou nos observando uns segundos em silêncio, analisando a situação. Temi que se negasse a nos ajudar…

Finalmente, escancarou mais a janela e disse:

– Aguardem um pouco aí, que já vou abrir…

Pela demora, coisa de uns 10 minutos, deve ter preparado café antes de nos receber. A janela aberta indicava atendimento.

De poucas palavras, ele surgiu novamente ao abrir uma porta rangendo velhice.  Instrui-nos, com gestos, para levar a bicicleta à sala da casa, que mais se assemelhava a um depósito de quinquilharias.

Aquele homem devia ser acumulador. Tinha de tudo ali, até vaso sanitário…

– Quebrou a corrente – falou analiticamente. Isso sabíamos desde à serra.

Ele voltou a nos fitar idiotamente. Captei crítica em seus olhos verdes.

– Vai demorar um pouco…  – falou.

Perguntamos se poderíamos tomar café em algum lugar, ao que o ríspido senhor respondeu:

– Se têm dinheiro, vão tomar. Tem uma vendinha logo mais abaixo. Pelo horário, deve estar já aberta.

– Ok! – disse o mano. – Nós vamos achá-la.

Saímos para procurar a tal venda, que realmente acabara de ser aberta.

Uma mulher desdentada nos recebeu com um sorriso horrível, expondo irregulares gengivas roxas.

– Fiz café agorinha… Vocês querem com bolo de milho? – indagou.

A tal vendinha lembrava os espúrios ambientes gastronômicos da Índia, comparei na fase adulta.

– Sim, sim… Temos fome – respondi primeiro. É que o mano Zé era muito pão duro. Certamente, alegaria que a farofa suprira nossos estômagos.

Ficamos por ali uns 30 minutos, jogando conversa fora. Chegaram mais pessoas, e logo a mesa de sinuca foi ativada, com saraivada de tacadas.

Por ser sábado, aquilo devia ser a única diversão local.

– Acho que o cara terminou de remendar a corrente – comentou Nivaldo ‘Bundinha’, a título de finalizar o recreio.

– É mesmo…  Vamos lá! – convidou o mano.

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De fato, a minha bicicleta estava pronta, do lado de fora da casa do consertador rural.

– Remendei sua corrente. Podem reiniciar a viagem!  – disse o homem, olhar de quem esperava dinheiro.

– Ah, que bom, senhor! – resposta do mano. – Quanto foi seu serviço?

Ele fingiu meditar antes de dar preço. Cobrou menos do que pagamos pelo café. Acho que percebeu a pobreza do grupo.

Vinícius foi quem bancou a conta. Era o único que trabalhava nessa época, auxiliando tio Joaquim no armazém de chão batido, perto da ponte do Rio Vieira [Montes Claros].

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Dali em diante, nossa viagem prosseguiu animada. Cumprimentamos os tratoristas que trabalhavam na nova malha viária. Em alguns trechos, a terra estava mole, dificultando as pedaladas. Haja fôlego1

Perto das 11h, chegamos ao ponto de descida da temida serra de Bocaiúva. Foi motivo de comemoração geral.

O mano Zé, primo Vinícius e Nivaldo ‘Bundinha’ despencaram velozes na frente, deixando-me a ver navios.

Senti certa solidão viajante, e pedalei também firme, tentando alcançá-los, apesar das sequenciais curvas fechadas da perigosa serra. Descer muito veloz poderia ser passagem para o além…

Uma placa instruía em letras garrafais: “Trecho perigoso: teste os freios!”

Intuitivamente, retrocedi os pedais fortemente para acionar o freio da roda traseira. Na dianteira não tinha…

Infelizmente, a corrente não resistiu à forte pressão, rompendo-se novamente.

Pude vê-la tamborilando no cascalho mole que nem uma cobra se retorcendo em espasmos moribundos. Por estar veloz, inútil tentar resgatá-la. E agora?! Minha bicicleta não tinha freio de mão!

CONSEQUENTEMENTE, a velocidade da bicicleta duplicou a partir daí. Os para-lamas traseiro/dianteiro impediram que usasse os pés como freios improvisados. E desci tresloucado pela serra de muitos capotamentos e mortes…

Por sorte, nenhum carro subia naquele instante; se algum subisse, seria colisão frontal.

Cada vez mais veloz, vi-me obrigado a ficar posicionado no centro da pista, temendo despencar para a lateral ladeada por rochedos ou cair no abismo. Duas possibilidades sinistras…

Ainda relembro o assovio intermitente do vento açoitando as minhas orelhas, e o grunhido do cascalho sendo triturado pelas rodas da veloz bicicleta. Difícil sair ileso de uma aventura tão insana.

Muitas derrapagens aconteceram, mas bati os pés lateralmente, aflito para reequilibrar a magrela no eixo da pista. O verde geral da serra rodava nas minhas retinas como uma sequência de imagens projetadas, causando certa vertigem.

Mais outros sustos e, UFA!, a pista plana, de final de serra, abriu-se convidativa à passagem da louca bicicleta, conduzia por mãos trêmulas e olhar apavorado.

Pela extrema velocidade adquirida nesse desce-serra desgovernado, passei igualmente célere pelos amigos que me aguardavam abaixo. Gritei a plenos pulmões:

– ESTOU SEM FREIOOOO!

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Em Bocaiúva, recebemos dura reprimenda das tias Laura e Nina pela imprudência. Minha mãe ligara para elas várias vezes, preocupada.

Sempre gozador, tio Armando, irmão do meu pai, deu a boa notícia:

– Tem uma oficina de bicicletas aqui pertinho. Sua tia deu dinheiro para comprar corrente nova.

O retorno, no dia seguinte, para quem deseja saber, foi bem tranquilo, feito com total prudência. Nem fiz teste de freios ao descer a serra de Montes Claros…

JOÃO CARLOS DE QUEIROZ, JORNALISTA

 

 

 

 

 

 

 

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