Pequeno inocente se apavora na terra dos gigantes…

MONTES CLAROS-MG – Para conseguir ministrar aulas, após se formar no curso Normal, minha mãe foi obrigada a me deixar aos cuidados de creche instalada na Rua Camilo Prates, centro da cidade. Nada de lugar sofisticado, apenas prático, capaz de comportar dezenas de crianças. E como elas faziam um barulhão infernal o tempo todo! Gritaria irritante…

Mesmo com poucos anos de vida, tenho nítidos detalhes memorizados acerca do interior dessa creche: paredes adornadas por mini paralelepípedos multicoloridos, mesinhas  baixas e cadeirinhas. Havia salas espaçosas, repletas de brinquedos, dormitório dos pequenos e um refeitório modesto. Por exalar tentador aroma gastronômico, bastava ficar por perto para sentir fome.

No início, lógico, senti-me um estranho no ninho ao aportar na creche, meio ressabiado para me enturmar. Meninos e meninas me olhavam curiosos, talvez incomodados pelas minhas esquivas tímidas de comportamento. Eu optara por ficar  mais isolado, o que originou preocupação das cuidadoras.

“Vai brincar com seus amiguinhos, João!” – incentivavam.

Eu fingia nem ouvir, olhando-as rapidamente, de soslaio; sequer sabia qual resposta dar. Enfim… Fazer amigos ali se tornou bem complicado. Não raras vezes, detectei olhares de hostilidade dos meninos e meninas.

Ainda fui vítima de esbarrões propositais, sem falar que um dia derrubaram minha bandeja de lanche vespertino. A crueldade mereceu risos dos falsos anjinhos. Nunca reclamei nada para as tias.

Não tive dúvidas, portanto, de não ser bem-vindo…

Notoriamente acuado, resolvi me manter à parte das brincadeiras em grupo. Nas refeições, pegava meu pratinho e ficava confinado num dos cantos da sala. Torcia logo para o dia passar, quando o canto dos passarinhos anunciava sol posto, hora de ir pra casa. Meu olhar não desgrudava da porta de entrada, na esperança de ver minha mãe chegar.

Minha lancheira plástica passou a ter importância de aliada da solidão: entretinha-me mexendo nela o tempo todo, volta e meia mordiscando o lanche caseiro. Mãos no queixo, uma ou outra cuidadora sempre me observava. E até tentavam falar comigo, alegrar-me. Com quê?!

Em conversa cochichada com minha mãe, uma delas falou da minha dificuldade de interagir com os demais coleguinhas. Sugeriu ainda que cortasse o lanche caseiro, pois a creche oferecia – além de almoço/jantar – lanches matutino e vespertino.

“Joãozinho fica manuseando a lancheira o tempo inteiro…” – entregou.

Soube disso pela própria genitora, que quis saber o motivo de não estar feliz entre tantas crianças legais.

“Não gostam de mim”, apenas respondi.

Mesmo instruída pela cuidadora, minha mãe continuou abastecendo a lancheira; até reforçou os quitutes. Imagino que ela tenha imaginado o seguinte: aquela era minha única refeição. Se estava tolhido para me enturmar, certamente não lancharia com os colegas.

As moças sorriam ao checar o interior da lancheira e comprovar isso…

Bate-pernas do pequenino…

Numa manhã, sentindo-me mais angustiado pelo desinteresse da turma em conversar comigo, decidi que o melhor a fazer era ir embora. Chega de tanta humilhação!

Decisão tomada, fiquei de olho na porta de ferro, a de entrada da creche, atento a qualquer oportunidade de fuga. Restava torcer para o portãozinho do jardim não estar trancado…

Nem bem uma das crianças saiu com a mãe, surgiu a oportunidade tanto esperada: a porta de ferro estava somente encostada, sem tranca! É agora ou nunca!

Olhando ao redor, comprovei que as encarregadas prestavam atenção no estardalhaço de uma menina choradeira, que gritava pela mãe.  Tudo favorecia meus planos…

Sem tirar os olhos das tias, esgueirei-me de mansinho em direção à porta de saída. Não tive dificuldade em passar meu corpinho franzino pelo vão semiaberto, já correndo veloz para atravessar o pequeno jardim de rosas e jasmim. O portão frontal estaria trancado?! – pensei no ritmo da corrida.

Não, estava tudo liberado… Apenas um  clique e o portão me ofertou a liberdade da rua, ouvindo barulho de gente conversando alto e buzinas intermitentes de veículos. Chega de creche!

Desci correndo pela calçada, checando se não tinha cuidadora em minha perseguição. Não deixei de sentir certa apreensão pela incógnita do desfecho do foge/creche que protagonizei.

Somente então percebi ser tudo muito diferente, diria ameaçador. As pessoas pareciam gigantes apressados, indo e vindo sem parar pelas calçadas.

Nessa marcha insossa, detive-me no miolo da Praça Doutor Chaves, olhando a fachada do Mercado Central apreensivo. Ela se assemelhava aos templos dos adoradores de deuses que vi nos volumes coloridos da Bíblia Sagrada; livros que minha mãe guardava zelosamente.

Para amenizar o pânico emergente, continuei andando pela praça. Mas os gigantes esbarraram em mim sequencialmente, sem sequer pedir desculpas. Que malvados!

Tinham pressa não sei de quê. Foi quando bateu real arrependimento de ter empreendido fuga sem planejar meu destino…

Atônito, perdi a noção do que fazer diante daquela situação. Ficaria na praça? E se saísse dali?

Os gigantes me apavoravam cada vez mais, e ouvi vários gritarem ameaçadores: “SAI DA FRENTE, PENTELHO!” Mais esbarrões aconteceram, certamente propositais…

O choro criança, então contido, explodiu sem timidez, e o banco da praça me acolheu…

Jamais imaginara chorar numa praça pública, permitindo que todos vissem meu rosto banhado de lágrimas e a tristeza pedinte de socorro estampada nos olhos.

Tudo parecia perdido quando, de repente, uma mão macia apertou meu braço, puxando-me para levantar do banco. Era uma das cuidadoras! Por sinal, tia Célia, a minha predileta…

– Ah, Joãozinho!!! Que susto você passou em todas nós, menino! Vamos voltar pra creche! Sua mãe já foi comunicada do seu sumiço.

Outras duas tias surgiram para me consolar, e pude ver que não tinham nada de bruxas, pelo contrário: bondosas.

Confortado pela proteção, bracinhos envolvendo o pescoço da cuidadora predileta, pude olhar desafiante os gigantes que continuavam a andar pra lá e pra cá. Doravante, não poderiam me fazer nenhum mal.

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Voltei aliviado para a creche, onde encontrei rostos preocupados dos coleguinhas, que souberam do ocorrido. Dois deles me abraçaram sem vacilar, dizendo: “Que bom que voltou!” Outros, quiseram saber como foi minha aventura na terra dos gigantes. Interessante que não víamos as cuidadoras dessa forma…

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A partir desse dia terminou meu isolamento, pois pude finalmente me enturmar. Passei a ser um dos gritadores mais contumazes ao chegar na acanhada escolinha, e até torcia para minha mãe demorar: assim poderia brincar mais.

Por João Carlos de Queiroz, direitos reservados.

 

 

 

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