Tem velório nos fundos do meu quintal…

Para muitas crianças, torna-se pavorosa a simples visão de casas ostentando placas de luto, somando-se à respeitosa movimentação de pessoas na área frontal dos imóveis, parentes e amigos do falecido(a).

Por tradição, crianças não são adeptas de velórios; assim, ao menor sinal de defuntos no seu trajeto, fogem tresloucadas. Há uma minoria curiosa que até se aventura a averiguar tudo mais de perto…

E acrescendo maior temeridade impactante aos olhos inocentes, além dos ‘canelas esticadas’ em capelas/casas residenciais, velórios costumam exibir macabra parafernália decorativa (velas, castiçais, coroas de flores, etc…). Acompanhamento pra lá de sinistro…

Para se ter noção do que isso representa, conheci em MOC, nos anos 80, bairro Morada do Parque, uma conceituada médica legista. Ela simplesmente afirmou ter pavor de defuntos. Narrou, porém, que esse trauma jamais interferiu na condução normal das autópsias que realiza.

Conforme argumentou, cadáveres no IML não a incomodam, em absoluto, constituindo-se apenas em peças de estudo clínico. Já pensava dessa forma desde os tempos de faculdade…

Por essa premissa, a dissecação de corpos inanimados, frisou, encampa atividade meramente profissional.

Por vezes, ainda revelou a carismática médica, ao proceder autópsias, ela sentiu fome. E pelo fato de estar com ambas as mãos ocupadas, impregnadas de formol, não podia tocar em alimentos.

– A alternativa foi recorrer aos colegas que estavam por perto, pedindo-lhes para colocar pedaços de sanduíche na minha boca.

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Ao contrário do que muitos podem imaginar, não se trata de frieza médica. Na ótica da referida legista, seu medo de defunto só eclode quando o corpo é acomodado na urna, sendo enfeitado com flores e ladeado por velas gigantes.

– Cena típica de qualquer velório. Aí, já nem passo no mesmo quarteirão…

A referida legista contou que começou a temer defuntos na fase criança, depois que sua mãe a levou a um velório. Já adulta, formou-se em Medicina, mas a ojeriza por velórios permaneceu inalterada.

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Minha filha mais velha, Daniela Queiroz, médica pela UNIMONTES, hoje atuando em Porto Alegre, formou-se primeiro em Fisioterapia, em Patrocínio-MG. Nas aulas de anatomia do primeiro curso universitário, ela relatou que também recorria às colegas para se alimentar.

– Cada equipe dispunha apenas de um corpo para estudar. Não raramente, adentrávamos pela noite e madrugada…

Determinada, Daniela sacrificou a regularidade das refeições ao estudar atentamente órgãos do corpo humano, com lenço cobrindo boca e narinas, por causa do formol.

– A fome é imperiosa, e não importa onde, pode bater forte em algum momento. Isso sucedeu na Sala de Anatomia – relembra.

Ciente de que a oportunidade de estudar o corpo humano implicava na garantia de boas notas, ela não se constrangeu em atender os reclames do estômago por comida, engolindo, tranquila, pedaços de sanduíche ao lado do cadáver.

Detalhes: seus colegas faziam exatamente o mesmo, não interrompendo os estudos na Sala de Anatomia por causa da fome. As aulas de Anatomia se enquadravam como importantíssimas para os futuros fisioterapeutas.

– Não se trata de nenhuma insensibilidade médica. Mesmo em luta constante para garantir a vida humana, também é preciso aceitar a morte com naturalidade.

Daniela até emprestou da faculdade, certa vez, um fêmur humano, a fim de estudar em casa. Sua mãe assustou-se ao vê-la chegar com tal encomenda: “Você trouxe defunto pra casa, filha!”

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Também evitei velórios durante toda a minha infância, apesar de ser quase obrigado a participar de alguns. Um deles foi inesquecível: por horas, assisti meu avô Zezé Queiroz repousando eternamente dentro de urna humilde, de cor roxa, em Bocaiúva-MG.

Mesmo com defunto postado na sala, misturava-se ao odor de jasmim e velas forte aroma de comida, possivelmente frango, comprovei depois.

Entre contenção de lágrimas, cochichos, sussurros ininteligíveis, vi gente perscrutando o ar, olhar cobiçoso de fome…

Lá pelas 17h, o cortejo finalmente saiu, mas preferi aguardar o retorno dos parentes na praça acima. Nem pensar em voltar sozinho ao casarão onde o vovô carrancudo estivera esticado há pouco…

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Foi incrível comprovar que, após guardarem vovô a sete palmos, a turma voltou ávida para abocanhar a galinha com arroz, quitute preparado pelas tias. Devia estar deliciosa, em virtude da gula com que a panela perdeu peso rápido; 20 minutos após, não havia mais nada…

Só achei desconexo misturarem morte com cozinha. Isso porque as cozinheiras trajavam luto, assimilando-se a aves negras…

Será que as tias não auxiliaram a vestir meu avô antes de preparar o jantar? Preocupante isso…

Pode parecer idiota tais colocações, mas, apesar de também esfomeado, optei por engavetar os reclames roncadores de minhas entranhas gastronômicas. Simplesmente não conseguiria digerir nada dentro daquela casa triste! A impressão é de que o defunto impregnara tudo…

Voltamos todos silenciosos para Montes Claros, e até hoje, ao ver algo lilás, lembro do caixão de vovô…

UM OUTRO velório esquisito aconteceu bem atrás do nosso quintal, e pude acompanhar cada lance, postado em cima do muro. Bastou encostar uma escadinha para ter visão privilegiada desse concorrido velório, sediado no miolo do beco estreito, ridicularmente denominado de rua.

O referido beco “morria” mais adiante, sufocado por entulhos que poderiam abrir caminho à Avenida Geraldo Athayde, a poucos metros. Espantou-me a quantidade de pessoas que foram se despedir do idoso obeso daquela casa retangular, sem muro ou cerca.

A meninada gostava de xingá-lo de “bola gigante de gude”, obtendo silenciosa indiferença à contínua provocação. O pobre homem, prostrado numa cadeira de rodas, contemplava mais além do que a criançada podia imaginar…

E agora lá estava ele, dentro de um caixão enorme, com os pés voltados para a mesma porta por onde entrou e saiu tantas vezes. Para participar do velório, muitos resvalavam em seus pés gélidos, envoltos em meias de lã xadrez.

Do muro, acenei para outros meninos que ousaram se aproximar da casa retangular. Um deles, Albertinho Piolho, quase entrou lá dentro, que coragem! Porém, na hora H, titubeou passos na porta aberta, retornando ao perceber o inevitável contato que aconteceria com os pés do morto. Não valia a pena tanto para puxar cadeira e ficar perto do caixão…

Uma série de velórios vem à minha mente, mas encerro por aqui. Não sem antes contar o dia em que adentramos numa suposta festa de grã-finos, em Montes Claros, na Avenida Afonso Pena. Julgando-se pelos trajes suntuosos das meninas, rapazes e adultos, em conversa delicada na calçada, aquela festa devia ser o máximo. Gente rica sabe promover festas fenomenais…

Nosso grupo adolescente, acostumado ao regime “penetra” [sem ser convidado], foi circulando à vontade pelo imenso jardim, dali entrando na suntuosa mansão. Bastou seguir a fila de gente para chegarmos à sala principal, certamente o centro da ‘festa’. Festa nenhuma: havia ali, sim, um baita defunto dentro de caixão pra lá de luxuoso. Explicava-se assim a ausência de música, que calculamos ser apenas um intervalo…

João Carlos de Queiroz, jornalista

 

 

 

 

 

 

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