Guardadas no Rio, obras do Museu de Arte Naïf estão sem destino
Herdeira procura compradores para manter coleção no Brasil Por Rafael de Carvalho Cardoso - Repórter da Agência Brasil - Rio de Janeiro
Um apartamento em Copacabana, no Rio de Janeiro, abriga hoje a maior coleção de arte naïf do mundo. São milhares de obras de artistas brasileiros e estrangeiros em local improvisado, sem acesso do público. Essa foi a solução encontrada pela museóloga Jacqueline Finkelstein para armazenar temporariamente o acervo do Museu Internacional de Arte Naïf (Mian), fechado desde 2016. A antiga sede, um casarão do século XIX, foi vendida no ano passado.
Jacqueline é filha de Lucien Finkelstein (1993-2008), joalheiro francês que construiu a coleção durante décadas no Rio. Sem contar com investimentos públicos ou privados para manter o museu em funcionamento, ela decidiu vender um conjunto das melhores obras.
Enquanto espera pelas ofertas, está catalogando cerca de três mil quadros, feitos por 300 artistas entre eles, Joaquim Leandro, Cardosinho, Miriam, Maria Auxiliadora, Silvia, Chico da Silva, Heitor dos Prazeres, Elza, Gerson, Bebete, Ozias, Mabel, Gerson e Lia Mittarakis.
A coleção atraiu o interesse de compradores estrangeiros. Jacqueline não descarta o negócio, mas garante que uma proposta nacional terá prioridade.
“Estou na esperança de conseguir encontrar um destino para as obras. É algo que eu gostaria muito que acontecesse para eu poder ficar tranquila com a minha consciência. Primeiro, em homenagem ao meu pai. A arte naïf era a paixão dele. Depois, porque eu acho importantíssimo divulgar e valorizar o que a gente tem de precioso nessa terra. Arte naïf é uma das expressões mais brasileiras, mais verdadeiras do nosso povo. Eu acho fundamental guardar os quadros aqui. Acho que é isso que mais me motiva a manter essa coleção até hoje e ela estar assim intacta”, declara Jacqueline.
Potenciais investidores
Quem assumiu a tarefa de negociar o acervo no Brasil foi Fabio Szwarcwald, gestor cultural, colecionador, ex-diretor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV) e do Museu de Arte Moderna do Rio (MAM).
“Estou ajudando a procurar potenciais investidores que possam comprar esse acervo e doar para um museu. O meu receio é que venha alguém de fora interessado e compre a coleção. A minha ideia é tentar mantê-la no Brasil, principalmente no Rio de Janeiro, que hoje tem o maior museu de arte popular, que é o Museu do Pontal. Estou conversando com eles [investidores], já demonstraram interesse, mas querem analisar agora a coleção”, salienta.
Além do seleto conjunto de obras à venda, há outros milhares de quadros do Mian guardados no apartamento em Copacabana. Jacqueline se comprometeu a doá-los para outras instituições culturais, entre elas, a Pinacoteca de São Paulo, o Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro, o Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, e o Museu do Sol, em Penápolis (SP). No ano passado, o painel “Brasil, cinco séculos de luta”, de Aparecida Azedo, foi doado para o Museu Histórico Nacional, no Rio.
Saga do museu
O Museu Internacional de Arte Naïf do Brasil (Mian) foi fundado e aberto ao público em outubro de 1995 por Lucien Finkelstein. A sede escolhida foi um imóvel do século XIX, comprado em 1994. Tombado como Patrimônio Cultural em 2001, o casarão fica no Cosme Velho, zona sul do Rio, a poucos metros da estação de trem do Corcovado.
O Mian recebeu o primeiro aporte financeiro em 2000, por meio do Fundo Nacional da Cultura, do Ministério da Cultura. O valor de pouco mais de R$ 30 mil era destinado ao projeto de catalogação e informatização do acervo. E foi renovado por mais um ano.
Na sequência, foi liberada até 2004 verba da prefeitura do Rio. Sem novos investimentos, Lucien encerrou as atividades do museu por tempo indeterminado em 2007. Apenas grupos escolares e pesquisadores passaram a ter acesso ao acervo em atividades agendadas.
Lucien Finkelstein morreu em 2008 aos 76 anos de idade e a filha, a museóloga Jacqueline Finkelstein, assumiu a presidência da instituição. Em 2010, uma inundação danificou cerca de 300 obras da coleção. Essa sequência de eventos levou Jacqueline a encerrar as atividades do museu em 2011. Oficialmente fechado para o grande público de 2007 a 2012, o Mian reabriu depois de ser contemplado em um edital da Secretaria de Estado de Cultura, no qual recebeu R$ 500 mil durante dois anos.
Entre 2012 e 2016, o museu se manteve com leis de incentivo, bilheteria, organização de eventos e arrendamento de um espaço para um café. Até que em 23 de dezembro de 2016, fechou novamente as portas. Sem patrocínios e incentivos externos, não conseguiu pagar os custos com a estrutura.
Exposições itinerantes
Nos principais momentos de crise, uma estratégia recorrente foi a realização de exposições itinerantes com parte do acervo. A ideia era divulgar a arte naïf e procurar soluções de investimento. Isso aconteceu em 2007, em parcerias realizadas com o Serviço Social do Comércio (Sesc) do Rio e de São Paulo. Em 2011, com pelo menos 20 mostras na Grande São Paulo e no interior do estado. Em 2019, o destaque foi um evento na Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage, no Rio, com 325 obras.
Agora, em 2023, é a vez do projeto Arte nas Estações, que inclui itinerário pelo interior de Minas Gerais. São 270 obras do Mian expostas em Congonhas, Ouro Preto e Conselheiro Lafaiete. Uma primeira rodada ocorreu no início de fevereiro e uma nova é realizada este mês.
“É o maior projeto de itinerância de uma coleção este ano. O objetivo é sair do eixo Rio-São Paulo e levar arte naïf para novos públicos, onde realmente a gente percebe que existe uma carência de exposições desse alto nível. A coleção é fantástica e fala com o interior do Brasil, porque vários artistas vieram do interior. Por isso, eu escolhi Minas Gerais. Então, é um projeto que resgata artistas que foram invisibilizados”, diz Fabio Szwarcwald, que também é responsável pela mostra.
Valorização da arte naïf
De origem francesa, a palavra naif pode ser interpretada como algo ingênuo, mas também natural e espontâneo. O primeiro uso dela no campo artístico foi para caracterizar, de forma pejorativa, o trabalho do artista francês Henri Rousseau (1844-1910) no século XIX. Autodidata, Rousseau nunca estudou em um centro acadêmico.
O tempo passou e o naïf começou a ser visto com mais respeito por críticos de arte. A simplicidade, antes considerada negativa, agora é o maior atrativo. Virou símbolo da subjetividade e originalidade criativa.
“Você chega na frente de um quadro e vê exatamente o que o artista quer passar. Não precisa entender de arte, não precisa ser um conhecedor. Simplesmente gosta ou não. É uma arte que você não aprende, ela vem de dentro para fora. Ela é espontânea. Não precisa seguir nenhuma tendência, nenhum modismo. Você tem que buscar a inspiração lá dentro de você mesmo, na imaginação, para ser um bom naïf”, afirma Jacqueline Finkelstein.
Há cada vez mais espaço em centros culturais e museus para o gênero. É o que atesta o especialista Jacques Ardies, autor do livro “A arte naïf no Brasil”, de 1998. Ele possui uma galeria em São Paulo com centenas de quadros e conta que houve um novo despertar de interesse pelas obras, principalmente dos críticos estrangeiros.
“No final do ano passado, consegui realizar a venda de uma obra do Chico da Silva, artista que hoje está sendo muito procurado. E eu tinha uma obra excepcional dele, grande, que estava comigo há uns 30 anos e foi comprada pela Tate Gallery, de Londres. Isso prova que até os museus lá de fora estão interessados e dão importância para a arte brasileira”, argumenta.
Jacques endossa a torcida para que o naïf tenha maior reconhecimento no Brasil, o que inclui a permanência da coleção do Mian.
“Eu acho essa arte essencial para o país, porque ela é extremamente brasileira. É muito original. Estamos falando de uma arte que expressa bem as nossas raízes. Por isso, deveria ser incentivada, apoiada e patrocinada”.
Edição: Kleber Sampaio
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