Minha melhor reportagem foi rabiscada em papel de pão e guardanapos
Nos anos 80, o amigo Moacir Lopes pediu-me para ir à comunidade Jaíba fazer uma reportagem sobre a situação dos colonos assentados na área. Moacir era então presidente da RURALMINAS – Fundação Rural Mineira, órgão com sede em Belo Horizonte e atuante também no Norte de Minas Gerais.
Moacir não forneceu maiores detalhes, limitando-se a dizer que os assentados informariam tudo que fosse preciso. Eu e o jornalista Leonardo Campos partimos pra lá sem muita esperança de coletar alguma coisa importante. No caminho, encontramos Moacir retornando para Montes Claros. Ele fez questão de pagar café com pão doce e requeijão numa das vendas localizadas na poeirenta rodovia.
– Seu irmão está lá; qualquer dúvida, ele pode ajudar – disse ao sair. Referia-se ao meu mano mais velho, José Antônio, um dos funcionários que contratou para assessorá-lo na RURALMINAS.
– Moacir tem cada uma… – comentou Leonardo de forma irônica ao observar o veículo do médico distanciar-se numa golfada poeirenta. Nenhum de nós sabia exatamente qual era o foco da reportagem no setor rural.
Já em Jaíba, onde chegamos quase à noite, ficamos impressionados pelo atraso geral da cidadezinha, que mais se igualava, naquela época, a um dos muitos redutos perdidos no deserto.
No jantar, meu irmão limitou-se a dizer que as coisas andavam feias por lá. “Amanhã, quando formos ao assentamento, vocês vão entender”, foram as únicas palavras que disse, antes de irmos dormir.
– Esse Zé Antônio é cheio de mutreta – comentou Leonardo. Não tardou a roncar alto…
Também dormi, acordando às 6h sob cantoria alegre de galinhas de angola ao redor da casa, em coro com pássaros ruidosos nas árvores secas, certamente à procura de insetos, providencial “café da manhã”.
Ao longe, ouvi alguém tocar uma espécie de berrante solenemente… Quem tocaria instrumentos àquela hora?
O sol logo surgiu forte numa serra adiante, escancarando luz calorenta sobre as casas à base de reboco e caiadas de Jaíba. Elas resplandeciam fulgurantes no sóbrio lugarejo. Uma delas, sem mais nem menos, impunha autoridade natural, apesar de estar desconectada do restante.
Quis andar um pouco na frente do escritório da RURALMINAS, nosso improvisado hotel. O típico estica-pernas. Leonardo já estava lá fora e fumava sofregamente, como gostava de nicotina! Meu mano também acordara cedo, e ambos riram ao me ver, chamando-me de dorminhoco.
O mano nos levou até à casa de amigo, que nos serviu um café divinamente caprichado. Até ovos fritos foram oferecidos pela patroa do sujeito.
– Ela está honrada com a visita de vocês, senhores! – disse o anfitrião. Agradecemos a gentileza.
Antes das 8h, partimos para a área de assentamento. O mano começou a tagarelar, e pouco do que ele dizia poderia ser aproveitado numa reportagem. Comecei a entender que os assentados vivenciavam sufoco por falta de estrutura do governo.
Aos poucos, alinhavei os fatos, e entendi o descompromisso do presidente da RURALMINAS em ser o mentor das denúncias que queria que eu fizesse. Sempre muito humano, mesmo na condição de ocupante de cargo de confiança do governo, o nobre Moacir Lopes não se calava ao ver injustiças.
Os comentários raivosos, característica principal dos desabafos feitos pelos agricultores familiares assentados na região de Jaíba, cobravam infraestrutura para poder trabalhar a terra. O governo liberara lotes, mas eles não tinham como cultivar nada ali.
Sem bloco de papel nem gravador, fui anotando tudo em guardanapos e papel de pão. A maioria das entrevistas teve lugar nos rústicos armazéns montados nas proximidades do assentamento; tornou-se ponto de encontro rotineiro dos trabalhadores rurais.
Encantou-me ouvir a história de idosos e de jovens, e até mesmo de crianças. Alheias ao desenrolar das coisas na roça, inocentemente acreditando num bom destino, elas ignoravam a densa poeira acumulada nas trilhas em corre-corre alegre, de pega-pega. Tantas risadas felizes…
Pelo menos levei a máquina fotográfica, e as imagens, registradas em preto e branco, denotando cada realidade de vida, complementaram o que supus ser fracasso antecipado de reportagem.
Leonardo até duvidou que saísse algo legal de tantos rabiscos aleatórios. “Tem controle da ordem das anotações?”, brincou ao me ver reunindo os papéis brancos e pardos.
Nem eu tinha certeza de que conseguiria elaborar algo interessante. Não contava, evidentemente, com meu gravador mental, que, no ato do dedilha teclado da máquina de escrever, rebobinou a fita das falas e as impressões visuais captadas. Emocionante ver tanta miséria instalada no lugar da antiga esperança dos humildes agricultores.
O material foi publicado no jornal “Estado de Minas”, página inteira. A tônica da reportagem versou sobre a frustrante realidade vivida na região de Jaíba por dezenas de famílias assentadas pelo governo. Em cada fisionomia, no lugar de sorrisos comemorativos de que teriam seu torrão produtivo, agora imperava torrencial de pura decepção. O presente anunciava impiedoso amanhã…
Ainda abordei as dificuldades dos agricultores em alimentar as pequeninas bocas inocentes das proles que levaram para aquele fim de mundo, lugar ermo e desprovido de tudo. Até o acesso à estrada principal ficava distante do assentamento, jornada cansativa a pé…
João Carlos de Queiroz
Ainda sem nenhum cargo oficial no órgão, eu e o jornalista Leonardo Campos dirigimo-nos
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