A casa que desabotoava…
O quarto podia ser qualquer um, e a sala, mais espaçosa, tinha aspecto confortável, típico domicílio da classe média. Mais uma vez, estávamos reunidos nesse ambiente caseiro para dialogar coisas triviais ou importantes, nunca se sabe…
Também existia forte possibilidade de que ácidas fofocas emanassem espontâneas entre as abordagens familiares a serem elencadas oportunamente. Isto sucederia em tempo impreciso de cálculo.
O que se sabia, concretamente, era que cada um dos presentes, a maioria constituída de parentes consanguíneos, possuía língua peçonhenta. Fofocar faz parte do trivial humano, e equivale a uma perigosa mistura de nitroglicerina social em estágio hibernado.
No entanto, naquela tarde, todos pareciam felizes, em harmônica convivência de distinta discussão prazerosa a ser entabulada, apesar do silêncio vigente nos primeiros momentos. Sempre começava assim.
– Feche a janela, João, vai chover – instruiu minha mãe. Ela jamais errava prognósticos de mudança de tempo.
Levantei-me solícito para cumprir a ordem, mas algo estranho aconteceu ao puxar o ferrolho superior da janela: o dispositivo travou de vez.
Aí, devem me questionar que ferrolho é esse, imaginando qual seria o tipo de janela e outros detalhes dispensáveis. Simplesmente não sei; no entanto, o referido ferrolho existia, sim.
Ainda tentando atendê-la, forcei o trinco superior {anexo ao ferrolho} e algo fantástico aconteceu: a casa começou a ser “desabotoada”, como se fosse uma camisa de fecho avariado…
– Pare, João! Vou chamar alguém para ajudá-lo! – gritou minha mãe ao perceber o perigo. A ajuda chegou através de um rapaz desconhecido, que trouxe um dispositivo de solução geral, informou.
Eu tinha agora em mãos uma pequena chave, idêntica à usada em aparelhos de celular, para troca de chip. E, por mais que a forçasse, no intuito de “abotoar” a casa e não permitir seu desmonte, a chave não girava fácil…
O rapaz em questão exibiu grotesca ausência de molar superior ao pedir a chave para resolver o problema.
– Gire a chavinha quando ele mandar, João – nova instrução da minha mãe. Aquela casa precisa ser abotoada com segurança!
O rapaz posicionou-se perto do ferrolho superior da janela, instruindo-me para introduzir a chave e girá-la, bem devagar.
– Se não agir desse modo, a chave vai quebrar e a casa irá abaixo… – alertou com voz cochichada.
Não confiando muito, atendi sua orientação: mesmo porque a chavinha poderia não resistir e quebrar, desabotoando a casa por completo.
– Vá com cuidado, João, não force a chave além de sua capacidade – instruía minha mãe sem parar.
Surpreendentemente, o rapaz disse que precisaria dela em seguida para repor seu dente faltoso.
Somente então soube que aquela chavinha tinha função dupla, no caso. Fixar o dente era sua condição para nos ajudar, o jovem deixou claro…
Ao dizer “gire”, já com a chave introduzida no ferrolho mencionado, senti que toda a casa poderia desabotoar e inexistir de relance. Audacioso, tipo um lance de sorte que não poderia dar errado, iniciei o delicado giro, não sem ficar atento à fragilidade da pequena peça em mãos.
A princípio, a chave girou meio forçada, e, por uns segundos, temi que quebrasse, acaso insistisse em pressioná-la além de determinado ponto.
De repente, para alívio meu e do rapaz {que aparentemente resolveu o problema}, a chavinha emitiu um estalo quase imperceptível, terminando por efetuar giro completo. Pronto: conseguimos abotoar seguramente a inédita casa!
Minha mãe e outros, que nem imagino quem sejam, gritaram alto de felicidade, comemorando nosso feito.
O enigmático rapaz sorriu feliz, encarando-me interrogativamente. Sem dúvida, aguardava que cumprisse agora o trato de repor seu dente faltoso. Somente a chavinha do ferrolho poderia fazer tal procedimento, adiantara…
Sorri de modo agradecido, para que entendesse que estava plenamente ciente do meu compromisso, e assim não o decepcionaria.
Na sequência, que nem compreendi direito, o mesmo rapaz já tinha a chavinha introduzida num dente, peça apresentada ao meu rosto incrédulo. Onde ele arranjou a pequena prótese, não tive a mínima ideia…
Minha função seria agora girar a chave para fixação do dente, o que fiz de forma cuidadosa, enquanto o rapaz manteve seu bocão aberto. Deu certo.
Logo ele voltou a sorrir sem nenhum vácuo na arcada superior; aquilo devia incomodá-lo bastante, deduzi.
Com nossa casa bem abotoada, só restava complementar as comemorações com os familiares. Alguém trouxe um bolo de chocolate, cantando parabéns. Não sabia ser aniversário de ninguém…
João Carlos de Queiroz, jornalista
#Relato de sonho. Conforme leram, o texto, em si, difere da realidade, adentrando num sentido de alienação. Isso porque, deduzo, não existe casa alguma que possa ser abotoada e desabotoada a bel prazer dos seus moradores. E nem me refiro aqui à chave que fixa dente fujão…
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