A beco do “vai quem quer”; mas todos os marmanjos iam…
Nos anos 60, existia em Montes Claros-MG acanhada zona boêmia. enfronhada num apertado beco lateral à quadra da Praça de Esportes, área central da cidade. O negócio esquentava por lá ao cair da noite, com entra e sai ininterrupto de homens e mulheres por um pequeno portão amarelo. Ali devia ter coisa boa…
Essa cena se assemelhava à marcha cadenciada de formigas operárias rumo ao único buraco de acesso ao interior do formigueiro. Talvez isso continuasse a ocorrer durante a madrugada, calculei em várias ocasiões de observador curioso do lugar. Ainda era criança, não me deixavam nunca entrar…
Bêbados também entremeavam acirrado bate-boca por qualquer motivo nas proximidades desse famoso “beco do pecado”. Tal denominação foi dada por beatas consagradas da cidade. As igrejas da cidade reluziam limpeza e tinha decoração primorosa graças ao trabalho dedicado dessas paroquianas.
Mal se aproximavam do beco, as matronas angelicais faziam o sinal da cruz+, benziam o corpo e apressavam a seguir os passos, com véus negros cobrindo rostos carrancudos. Óbvio que detestavam a existência da zona boêmia!
As beatas atribuíam o livre funcionamento do baixo meretrício à “perversidade audaciosa dos inimigos de Deus”. Não raro, também jogavam água benta na entrada do beco, enumerando mais sinais da cruz+…
Falava-se, inclusive, que a “zona da praça”, conforme ficou conhecida, era forte concorrente de outros pontos de luz vermelha e azul na cidade. Eu só conhecia aquela; e por fora, somente…
Na época, as zonas “mais respeitáveis”, digamos socialmente aplaudidas por boêmios mulherengos, ficavam sediadas mais na região do bairro Morrinhos e antiga Malhada, atual Santos Reis.
Havia outras, segundo comentários adultos, funcionando lá pelas bandas do Cintra, ou escondidas em bairros em formação. Nos anos 60, Montes Claros e o atraso andavam juntas…
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De passagem, assuntando como quem não quer nada, percebi que rolava muita coisa séria naquele indecifrável ambiente: risadas femininas, masculinas, e até gritos exaltados, além de ordens imprecisas.
Vez ou outra, alguém saía correndo desse beco, gritando a quem estivesse no seu caminho. Eu fui um desses obstáculos humanos:
“Sai da frente, menino! Vai pra casa, infeliz! Aqui não é lugar de criança!”
NUNCA liguei muito para broncas do tipo, sequenciando meu curioso plantão na zona. Uma das “funcionárias” inquiriu por qual motivo gostava tanto daquele beco, e a desculpa foi esfarrapada:
– Estou cortando caminho. Esse beco desemboca na minha rua, a Altino de Freitas.
A mulher me olhou atentamente, para dizer com ar divertido:
– Para quem quer chegar logo em casa, você não parece nada apressado… Fica aí por horas e horas, todas já vimos. Nem parece ter família, garoto!
Apenas sorri de leve, retribuindo o que calculei ser um comentário simpático por parte dela. E revelei meu sonho de conhecer o interior da zona.
– Aí, guri, você já pediu demais: não pode! Criança não entra aqui nem com os pais!
Fiz cara de triste e saí de mansinho pelo beco. Ainda escutei a mulher gritar alto:
– Vai direto pra casa! Seus pais devem estar preocupados!
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Mesmo após vários anos, a velha zona boêmia continuou resistindo. No Carnaval, anos 70, já incluso na fase adolescente, e munido de amigos bem sacanas, resolvi assustar os que estivessem naquele escuro beco pecador.
Uma máscara de monstro, espécie de pele colante, veio a calhar aos meus maquiavélicos propósitos….
Ao contrário do que ocorria cotidianamente, o beco estava vazio naquela noite. Mas deu pra escutar forte burburinho de conversas no interior da casa, palmas de aniversário, risadas, copos tilintando, etc…
Bati forte no portão umas cinco vezes, e nada… Por fim, escutei passos se aproximando, em meio a conversa animada de duas mulheres. A fechadura do portão foi girada decisivamente.
ACOPLADA AO ROSTO, a máscara de monstro assustava fácil à primeira vista. Foi exatamente isto que aconteceu quando as duas funcionárias escancaram o portãozinho e eu enfiei o horrendo carão monstrengo em sua direção.
– Aiiiiiii – Meu Pai do Céu! – gritou uma. A outra quase desmaiou na minha frente, sendo amparada pela amiga gritadeira. Ambas saíram correndo para buscar ajuda dos clientes…
– Vamos embora! Logo vai aparecer algum valentão, cara! – alerta dos amigos. E eu lá, feliz pelo êxito do susto. Não hesitei também em entrar no quintal da zona, confiando que o medo das pessoas me protegeria. Estava enganado!
O tapão estalado no pé da orelha fez com que rodopiasse pelo quintal que nem peru natalino alcoolizado. Inutilmente, busquei apoio emergencial numa das mesas, antes de cair de vez no chão ensebado da zona.
Sem perda de tempo, o autor do tapão disparou belo chute nos meus “quartos”, e então consegui me levantar zonzo, depois de quase me arrastar por uns metros.
O repuxão violento no rosto indicou que ele tirara a máscara, e isso, talvez, tenha me salvado, pois se mostrou surpreso ao dizer:
– Ora, seu malandro! É quase um menino! E quer assustar as moças, veja só! Se não fosse um fracote, iria tomar agora era uns bons sopapos! Suma rápido, vamos! – gritou o sujeito, creio que segurança da zona. Eu nem quis argumentar nada…
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Os demais componentes da turma estavam apreensivos do outro lado do beco, na Rua Altino de Freitas. Ao perceber minha saída intempestiva pela apertada passagem, “limparam” a entrada oposta de modo relâmpago. “Bando de Judas, traidores!”, concluí mentalmente.
Não vi sinal de nenhum deles ao chegar à Rua Altino de Freitas, ainda sentindo forte ardência e zumbido inquietante no ouvido vitimado pelo inesperado tapão.
NUNCA MAIS voltei ao beco da zona da Matriz. Melhor não…
Por João Carlos de Queiroz, jornalista
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