A bruxa de Pau D’Óleo…

PARTE CINCO

Pra variar, a manhã já se impôs ensolarada nas ruas irregulares de Pau D’Óleo. Saí do quarto meio sonolento, à procura de café. Por sorte, a recepcionista, talvez num dos seus raros dias otimistas, perguntou se não queria provar um pouco. “Tá fresquinho, terminei de passar”, disse.

Ainda trouxe, outra surpresa, dois pedaços de bolo de fubá, anunciando que ela mesma fizera na noite anterior. Comi devagar, saboreando o café, realmente gostoso, bem forte. E somente então abordei os acontecimentos da noite, atento às mudanças de sua fisionomia.

– O senhor deve ter bebido além da conta, se posso dizer assim, desculpe… – foi o primeiro comentário dela após me escutar. Ficou em silêncio por uns minutos, depois emendou…

– Mas não ouvi nada. E, pelo que deduzo, em relação aos demais hóspedes, ninguém também ouviu. Alguns hóspedes levantaram mais cedo hoje; passaram por aqui antes das 7h, sem comentar nada…

Senti-me contador de lorotas, e retruquei:

– Nem é questão de apenas “ouvir”, pois também vi. E vi muito bem, acredite ou não! A bruxa saiu de um dos quartos, aquele que fica perto dos sanitários. E depois  voou rumo à janela dos fundos, aberta sem que ninguém a tocasse…

A mulher soltou uma risada esquisita, parecendo estar engasgada. E novamente argumentou que eu poderia ter excedido no álcool.

– Não, minha senhora, nada de álcool. Não bebi uma gota sequer. Vim dormir mais cedo, já esperando o apagão que acontece todas as noites. Dessa vez demorou, nem vi quando aconteceu. O susto foi acordar com a janela do quarto escancarada, e a foice cravada no guarda-roupa. Aí, teve início mais coisas estranhíssimas…

– É, a gente imagina muitas coisas sem poder explicar depois como aconteceu. Não digo aqui estar duvidando do senhor, pelo amor de Deus! Mas pode ter sonhado, e, ao despertar, ainda continuar meio grogue, sonhando. Tive experiências assim…

– Tem também as crianças: a bruxa esteve com elas no quarto. Estavam muito assustadas, correndo pela pensão por tudo quanto é lugar. Fugiam deliberadamente da bruxa…

– Vou dizer algo pro senhor: essa bruxa é folclore, não existe. Eu só alerto meus hóspedes, ao falar dela, para não ficarem saracoteando pela cidade após a energia ser desligada. Depois, fico morrendo de rir da cara de medo deles…

– Eu vi essa bruxa, e não estava dormindo, garanto. E vi também o pavor das crianças, coitadinhas… Os pais deviam estar desmaiados, enquanto seus pequenos passavam tantos apuros…

– O senhor disse ter visto a bruxa sair de um quarto perto dos sanitários, onde as crianças também estavam… Só que lá não tem quarto nenhum. E, para sua informação, também não temos hóspedes com crianças aqui. Foi sonho, pesadelo bravo. Se não rezou ao dormir, isso acontece…

AO PERCEBER que não acreditava em suas palavras, ela deixou o balcão e pediu para acompanhá-la. Intuitivamente, sabia que estava indo direto ao quarto mencionado.

A mulher caminhou resoluta, e eu atrás, olhando suas ancas flácidas balançarem lateralmente no vestido colado. Deteve-se na frente de um pequeno armário, onde, na noite anterior, aparentava ser porta de quarto.

– Só tem isso aqui, um armário de ferramentas; nunca existiu quarto aqui. Nem coloco mais ferramentas nele há tempos…

Lembrei-me de outro detalhe, a janela alta, local de fuga mágica da bruxa, e a recepcionista soltou outra risada irônica, pedindo para mostrar o local. Nada de janela!

– O senhor está muito sugestionado pelas lendas locais. Sugiro descansar um pouco à tarde, para não ter pesadelos noturnos…

Não comentei mais nada, e o último gole de café, já frio, foi sorvido às pressas ao voltarmos à recepção. Saí dali sentindo o peso do olhar crítico da dona do lugar. Deve ter imaginado que enlouqueci…

##

NA PRAÇA, conversei com alguns nativos, e muito sutilmente sondei sobre a bruxa. Uns ficaram em silêncio desconfiado, mas três disseram que não “era tempo dela”, apenas na quaresma. Nenhum confirmou tê-la visto pelo menos uma vez.

– Meu saudoso pai já a enfrentou, contava isso o tempo todo. Ela teme água benta, e berrou que nem bode na faca quando ele jogou um pouco nela. Diz ter visto a pele cinzenta se romper na hora…

Falei ainda da fonte d’água, da mulher cigana que vira ali, e das duas crianças, possivelmente seus filhos.

– Olhe, moço, essa aí eu lembro bem: foi uma cigana que passou por Pau D’Óleo quando eu era ainda adolescente. Por onde ia, ela carregava um casal de crianças. Não sei se eram seus filhos, mas a obedeciam…

A descrição que fiz correspondeu às lembranças do matuto, e ele acrescentou sério:

– Nunca soube direito o que aconteceu, qual foi seu destino e das crianças… Mas tínhamos medo daquele saião que usava. Uma mulher muito feia, desdentada. O senhor é novo na cidade, mas parece saber de tudo…

Almocei rápido, até sem apetite, creio que em função do bolo de fubá, e voltei para a pensão. Antes de atravessar a praça, olhei para meu quarto, janela aberta. Mas eu a havia trancado ao sair, tinha certeza.

Ainda olhando para a janela, vi as duas crianças postadas ali, candidamente admirando a praça, e uma delas até me acenou. Aquilo começava a mexer com meus nervos…

Não tinha a mínima ideia de qual era a intenção dos pequenos em me perseguir. Pois, claro, já tinha virado perseguição de fantasminhas…

– Boa tarde! – disse sem parar ao passar pela recepção. A gorducha nem levantou os olhos da caderneta, limitando-se a um aceno preguiçoso de mão.

Girei ansioso a chave na fechadura, talvez já sabendo que a janela estaria trancada, como de fato estava.

Em cima da cama, muitos brinquedos de criança, incluindo um futebol de mesa. Nem desci pra perguntar à mulher por que estavam ali…

João Carlos de Queiroz

 

Comentários estão fechados.