Defunto “ressuscita” em pleno velório e até familiares saem correndo…

Zé Quitandas era homem solitário, sujeito por demais conhecido nas redondezas do município de São João da Ponte, comunidade incrustada no ressequido miolo norte-mineiro. Lugar de nome esquisito: será que o santo (antes de ser santo) gostava de pontes? Não é o mais importante, no caso…

O fato é que esse mineirinho matuto fez fama de consertador de panelas de tudo quanto é tipo, incluindo as de pressão.  Sua felicidade residia no sorriso agradecido das donas de casa. “Agora, ela {a panela} volta à ativa…” – alardeavam as cozinheiras.

Além dos trocados que recebia pelos consertos, Quitandas costumava filar café da manhã e almoço nessas andanças à cata de serviço. Dizia convicto: “Convite pra comer não pode ser recusado jamais”. Se não o convidavam, ele incitava convites para ser mais um dos presentes à mesa: “Cheirinho bom… É frango?” Ou então: “Esse aroma de bolo de milho lembra minha mãe; saudades dela…”

Desnecessário mencionar a cara de alívio de Quitandas ao ouvir: “Fique para almoçar conosco, Zé!”  De rogado, ele não tinha nada…

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Para se locomover na área rural, Zé utilizava uma bicicleta munida de freios manuais. A caixa de ferramentas ficava afixada no acomoda garupa.  Num ritmo preguiçoso de pedalar, anunciava ao megafone estar passando para resolver o dilema de panelas quebradas

Na verdade, portador de jeitão sossegado, Quitandas nunca teve pressa para nada, quanto mais em pedalar. Mas tinha vozeirão forte para propagandear seus dons de conserta-tudo que nem ‘homem da cobra. “Quitandas está passando” – berrava. Se chamado por alguém, aí, sim, mudava essa postura displicente para pedalar rapidamente à casa do provável cliente. Ainda mais se fosse perto da hora do almoço…

Com tanta disposição, comentava-se que ele iria viver por décadas. Dedução errada: já numa manhãzinha de verão, dia que prenunciava sol ardente, correu forte a notícia de que Quitandas morrera. “Encontraram o pobre largado lá na estradinha do Brejo dos Grilos; ainda portava cantil na mão. Deve ter sofrido uma sede horrível antes de morrer.” Os cochichos se espalharam facilmente, tornando-se manchete na pacata São João da Ponte…

Uma vez que morava sozinho, apesar de sempre dizer que tinha parentes naquela região, resolveram velar o consertador de panelas no sítio de Justina Mathias, roceira brava e de pouca conversa. “Por mim, tragam o defunto pra cá: vai animar um pouco isso aqui… Só providenciem comida e bebida para o velório; isso é por conta de vocês”.

Não demorou e o defunto tomou conta da mesa onde os vaqueiros almoçavam debaixo do pé de manga-rosa. Era um espaço frondoso, cercado de outras frutíferas, e Justina providenciou mais bancos para acomodar quem ali se acocorasse. Não tardou para o local ficar apinhado de gente: somente duas carpideiras, contratadas não se sabe por quem, ensaiaram choro inconsolável diante do corpo. Quatro velas tremulavam sinistramente ao redor de Quitandas…

Perto do meio-dia, serviram a primeira rodada de refeição: galinha com arroz e garapa fresca. Afoitos em saciar a fome, ninguém se importou com a mortiça proximidade do então consertador de panelas. Um sujeito falador, desses sabe-tudo que existe em qualquer ponto habitável, apareceu por ali anunciando convite cachaceiro: “Vamos beber, pessoal, pois o  momento, hoje, é de dor”.  Por pouco, não disse que era de alegria…

Uma vez que o levanta-ânimo-festivo levava garrafas de pinga curraleira, não teve dificuldade para convencer os demais pinguços presentes a acompanhá-lo. Um outro participante do velório disponibilizou caixa de som com rádio, destilando músicas roceiras. E assim o então ambiente fúnebre se transformou em agito sertanejo tarde afora…

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Já no cair da noite, o falatório geral sobre a vida de Quitandas diminuíra, para aumentar a expectativa do que seria servido no jantar. Pelo efeito da pinga, Manoel da Cinta, sapateiro local, até ensaiou passos trôpegos de dança ao redor do caixão, dizendo atrevidamente ao defunto: “E você fica aí, seu panaca! Está perdendo a festa, sô!”

As carpideiras veteranas recriminaram esse gesto de afronta ao morto, mandando o folgado do Manoel da Cinta tomar prumo na vida e respeitar quem já partiu dessa pra melhor. “Ah, velhas do cão! Por que não vão “ladrar” lá nos quintos dos infernos, hein?” – respondeu desaforado.

Na defesa dessas senhoras apareceu um sobrinho privilegiado em músculos, e por pouco Manoel da Cinta não fez companhia a Quitandas no outro mundo. Aliás, para se livrar da quase surra, a bebedeira que ele aparentava sumiu num passe de mágica. Sorrindo visivelmente amarelo, ele disse: “A gente tá com o coração sofrido pela perda de Quitandas; desculpe pela brincadeira…”

Finalmente, o esperado jantar saiu, porém bem mais simples do que o almoço: serviram arroz branco, feijão com farinha, mandioca e carne moída. Indiferente ao cardápio noturno, a moringa cachaceira voltou a circular ágil entre os comensais, todos devidamente aparelhados com copos de alumínio. Na realidade, latas de milho e de outros produtos…

Pança cheia, as atenções se concentraram novamente no defunto, agora iluminado por lâmpadas instaladas durante a tarde. A mesa mais parecia uma árvore de Natal deitada. Alguns comentaram saudosos: “Eis aí um homem trabalhador: vai fazer falta; andava por essas bandas de forma incansável. E como era gentil!”

Em função do relaxamento sonolento provocado pelo jantar e cachaça, nenhum deles percebeu quando o defunto descruzou vagarosamente os dedos sobre o peito. O efeito da catalepsia {doença em que o corpo assume estado cadavérico, praticamente anulando as funções vitais} estava passando…

Na sequência, Quitandas abriu os olhos e moveu os pés, movimentos agora percebidos por uma criança. “Mãe, o defunto acordou!”, disse. A mãe supôs ser infantilidade do filho, colocando-o no colo. “Tente dormir, menino!”

O estardalhaço maior aconteceu a partir do instante em que Quitandas ergueu o corpo da mesa e apoiou as mãos na mesa, tentando entender o porquê de estar ali, cercado por tanta gente. Pior: não entendeu nada o motivo daquele corre-corre espalhafatoso de todos rumo à saída da fazenda; correria entremeada por gritaria imensa de pavor…

A própria fazendeira Justina Mathias, famosa por ser brava, e que ultimamente se queixava de artrose e uma série de empecilhos físicos, virou atleta olímpica pátio afora. Os gritos de medo da mulher ecoaram fortes na pradaria da serra por minutos seguidos…

Ao “ressuscitar”, Zé Quitandas deu guinada diferente no ambiente que há pouco sediava animada festa de cachaceiros: toda a área ficou desértica repentinamente…

Apenas o cachorro de Justina Mathias não correu do “morto”, enroscando-se amorosamente nas suas pernas. Ele já o conhecia de outras ocasiões em que consertou panelas e filou almoço…

“Ué, sô, o povo todo endoidou, é?”, questionou-se Quitandas, agora encostado na cancela do sítio. O silêncio da noite se transformou num vozerio perturbador de gente correndo pra tudo quanto é lado da zona rural…

Ele retornou ao centro do pé de manga-rosa para estudar melhor o caso. Mesmo sem caixão funerário em cima da mesa, ali havia flores (jasmim) e velas nos quatro cantos. Decoração suspeita… Quitandas finalmente caiu a ficha de que ele foi o astro principal daquele ambiente…

“Mas… se eu morri, como é que estou vivo?” – outra indagação interior. Ele agradeceu intimamente pelo terno que alguém o presenteou, procurando calçados disponíveis. Não ganharia a estrada calçando apenas meias…

Zé entrou no barraco ao lado (utilizado pelos vaqueiros) e achou um par de botas de Eleutério, veterano tirador de leite contratado por Justina. “Vou pegar emprestado, depois devolvo”. Dito isso, calçou e aprumou o corpo na estrada; não sem antes devorar uma pratada de comida, ainda fumegante. A noite fresca amenizou a marcha longa de volta ao lar…

*Contam que, a partir desse dia, ninguém mais quis contratar os serviços de Zé Quitandas: todos fechavam portas e janelas quando ele anunciava estar passando. “É o defunto de novo! Fechem tudo!”

Por João Carlos de Queiroz, jornalista – Mtb 381.18-MT

 

 

 

 

 

 

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