Grotesco divisor de classes sociais tinha lugar no Trem Azul…

Viajei no Trem Marrom (que se transformava em Trem Azul em Montes-Claros-MG) entre os anos 70 e 80. Trazia uma legião de migrantes dos rincões do Vale do Jequitinhonha e da própria Bahia, estado fronteiriço com Minas Gerais.

Fala-se muito, até hoje, do famoso Trem Marrom e Azul, símbolos dos áureos tempos ferroviários do Brasil, especialmente sobre a intensa movimentação de passageiros registrada em Minas Gerais entre as décadas de 60, 70 e 80. Cada terminal ferroviário possuía uma estrutura mínima de atendimento para emissão de passagens e armazenamento de bagagens e cargas. Outros, já contavam com oficinas para reparos mecânicos nas locomotivas e vagões, a exemplo de Janaúba-MG e Montes Claros-MG.

Naquela época, as composições da R.F.F.S.A. cruzavam regularmente o Norte de Minas Gerais com destino a Belo Horizonte, transportando almas ansiosas e outras nem tanto, sem a mínima esperança de nada. Cenário produtivo para escritores e roteiristas de filmes, temática de realidade impactante.

Nas breves paradas do Trem Marrom nas pequenas cidades norte-mineiras, podia-se ver um leque de fisionomias estáticas e sem sentimento aparente nas janelas, como se aquilo fosse normalidade total. Previsível adivinhar a história geral de cada um daqueles migrantes: fugiam da seca inclemente na região de clima abrasador; ali mesmo, por tempo impreciso, viram a criação morrer à míngua de fome e sede, e a lavoura se tornou tosca massa de vegetal amarelado, por falta d’água. Sem falar nas panelas, vazias…

Sem comida para a prole faminta, o jeito foi partir, abandonando tudo que foi, durante bom tempo, o aconchego sereno de um lar rural, gradualmente metamorfoseado em rotina torturante e desesperadora. Crianças chorando de fome, com costelas à mostra, toca fundo o coração de qualquer pai e mãe…

Viver no sertão, sem dúvida, sempre se constituiu assim numa empreitada difícil, pois exige determinação inabalável, dia após dia. Cada amanhecer, dizem os sitiantes, é desafio para que novos amanhãs aconteçam. É que muitos não aguentam o tranco insuportável e abandonam tudo de repente, abrindo mão daquilo que foi traço motivador de vida tranquila. Partir se tornou uma alternativa atrativa…

Dessa forma, os vagões do rústico Trem Marrom percorriam a maltratada ferrovia (líder de descarrilhamentos em MG) sempre abarrotados de famílias paupérrimas, cujo almoço se resumia à farinha com açúcar e pão seco, quando tinham tais produtos. Cansei de ver crianças devorarem pratadas desse alimento com inegável prazer; o piso metálico do trem ficava salpicado de denso pó melado, enquanto os pequenos inocentes sorriam felizes pela pança cheia do banquete providencial…

São cenas que imortalizei durante as minhas rápidas viagens de reportagens pelo Norte de Minas Gerais, igualmente comprovando a gritante diferença de classes sociais a bordo dos trens (Marrom e Azul).

Até Montes Claros, o Trem Marrom saracoteava nos trilhos com a serena humildade de conduzir vagões sem nenhum conforto, “equipados” com cadeiras talhadas em madeira e ferro. Já em Montes Claros,  os vagões leito, poltrona-leito, restaurante e dos Correios eram engatados, a fim de seguir viagem até Belo Horizonte, parada final. O Trem Marrom se transmutava assim em Trem Azul, tornando-se gêmeos siameses.

Por curiosidade, eu percorria todos os vagões do Trem Azul durante minhas viagens a Belo Horizonte. Geralmente, ocupava algum assento no carro de poltrona-leito, mas a curiosidade de saber o que acontecia na composição vencia a languidez de ficar ali, na janela, apenas vendo a paisagem rural desfilar insossamente a meu lado.

A cada vagão transposto, as diferenças sociais ficavam mais latentes: depois do poltrona-leito, leito e o de segunda classe, vinha o vagão restaurante, precedido pelo de terceira classe, amontoado ruidoso de migrantes sertanejos. O odor de suor vencido, misturado a vômito e fezes de crianças era sentido logo após a porta desse último vagão de passageiros. Notório o sofrimento de cada olhar, que parecia inquirir sobre o motivo de estar ali…

Por algumas vezes, assisti o chefe do trem barrar a entrada dos passageiros da terceira classe no vagão restaurante. Já sabia o que eles queriam:  comida. Voltavam dali mesmo, da porta, ar decepcionado, de quem esperava sensibilizar alguém e forrar o estômago. O chefe do trem não poupava sequer as mulheres grávidas: elas retornavam à terceira classe com marmitas vazias.

Logicamente, não me limitei a observar passivamente essas aberrações, providenciando alimento para os pedintes. Sabia, porém, que não estaria nas outras viagens, e situações idênticas se repetiriam por vezes incontáveis…

O Trem Azul, apesar de sua nostálgica lembrança – soberano por proporcionar deliciosa atuação de transporte -, também tinha um lado bem decepcionante.  Nada anormal, aliás: esse comboio metálico era desprovido de alma e comandado por humanos; seres capazes de coisas boas, fantásticas, e outras bem ruins…

Por João Carlos de Queiroz, jornalista

 

 

 

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