“Terras de Nem” {na visão poética do escritor mineiro Afonso Celso}

Afonso faz do dia a dia observador motivos inspiradores de crônicas e contos. Desde a fase criança, esse mineirinho já suspirava pela criação literária, hoje com rompantes alternados na agitada vida brasiliense. "Um dia publico um livro", tem prometido aos amigos que se deliciam com sua veia talentosa. "Terras de Nem" é um dos trabalhos mais lindos que produziu a respeito das visitas que fazia ao sítio de Nem e Zezé, localizado no embrião do antigo povoado Pires e Albuquerque, atual Alto Belo-MG

Por Afonso Celso de Magalhães Ferreira – Certa vez, em uma dessas nossas aventuras rumo às terras do Nem, a noitinha nos abraçou, logo na saída de Pires, e nem de perto imaginaríamos os atropelos daquela jornada que estava por vir, com o prazo estipulado de mais ou menos uma hora de caminhada. Da estação, seguindo os trilhos, voltamos por uns quinhentos metros, e à esquerda nos adentramos no caminho que nos levaria ao destino.

Um pequeno riacho com pedras dispostas em seu leito nos facilitou a travessia, junto com os precisos passos e equilíbrio. Estávamos em quatro e com muito fôlego para percorrer as trilhas que iam surgindo pelo caminho e, vez ou outra, um gole de pinga e um cigarro nos cantos da boca, mais as cantorias para afinar a goela. Mais adiante, bem antes de chegar ao capãozinho e seus medos, ficamos à mercê dos palitos para seguir que rumo tomar, diante de uma encruzilhada. A noite ajudava a nossa desorientação, mas acabamos por decidir que à direita seria o indicado, e mesmo que errássemos pela escolha, mais adiante ficaríamos sabendo, e qual nossa decepção quando as águas do rio lamberam nossas botas. Mais uma vez voltamos aos palitinhos, e este nos mandou seguir pelo rio, à esquerda, literalmente.

Nos jogamos nele, com as mochilas ao alto da cabeça, e as águas pela cintura. Com as dificuldades devidas, andamos por mais de meia hora, e nesse caminho, um buraco no fundo do rio engoliu a perna do Paulinho, levando-o ao desespero e à perda da mochila, que com o peso afundou nas águas. Não tivemos dificuldades para encontrá-la, mas por esse impasse, decidimos sair do rio e procurar um outro caminho. Em volta, o colonhão alto deixava às cegas a nossa visão e caminhada, dificultando nosso progresso, mas nada disso atrapalhava nossa alegria e a vontade de chegar à curva do rio, nas terras do nosso amigo, onde montaríamos as barracas. Estava escuro, caramba, e o cansaço nos pedia uma pausa, isso sem contar a fome que chegava.

Mais adiante, com alguns tocos encontrados e apanhados pelo caminho, decidimos fazer uma fogueira para assar uma carne de sol, comprada em Montes Claros. Nos sentamos ali mesmo, no chão, em volta da fogueira. O João Carlos não quis comer da carne por achar que ela estava contaminada pelas ovas da mosca verde. Preferiu a fome.

Seguindo, mais adiante avistamos uma casa de fazenda, e lá estaria a resposta que precisávamos. Junto à cancela, e com medo de cachorro bravo, umas palmadas e uma voz lá de dentro: “Quem taí?” A porta de madeira se escancarou e uma luz de candeeiro nos mostrou uma senhora acompanhada pelo marido. Apressados em relatar o nosso desejo, e medo de chumbo de espingarda, falamos o necessário, e o casal nos atendeu com a gentileza comum aos homens da roça. A senhora, com sua mansidão nas falas, e com um sorriso nos indicou quão perto estávamos e que caminho seguir. Agradecemos e retornamos à estradinha, ávidos para o reencontro com Nem e família.

O velho e conhecido caminho nos levou até à porteira de entrada da fazenda e, com um grito, João fez despertar toda a casa. Nem e sua esposa Zezé apareceram na janela aberta, e ela, percebendo a figura de João, escancarou a porta de entrada e nos levou à cozinha onde faziam uma refeição. E como sempre fazíamos, quando de nossas idas ao sítio, levávamos uma lembrancinha ao casal e seus filhos menores. Ficamos ali, no calor do fogão à lenha, por um bom e prazeroso tempo, onde a prosa de Nem aguçava nossa atenção, e o café com biscoitos recheava nosso paladar.

O rio, bem mais ao fundo da sede da fazenda, onde seu braço fazia uma curva, era o local onde sempre nos acomodávamos, com suas areias limpas e claras. Sob o teto da barraca, e uma coberta a menos, nos apertamos naquele pequeno espaço, de barriga cheia, muita prosa, cachaça e cigarro.

Acordamos com gritos e bum nas águas frias do manso rio, com Edmar se preparando para o dia que chegava.

*Afonso Celso de Magalhães Ferreira é economista do Banco de Brasília-DF. Mineiro de Montes Claros, desde adolescente escreve crônicas sobre o cotidiano local e pessoal. Também é músico, exímio dedilhador de violão.

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