“A indústria automobilística precisa se unir aos gigantes da tecnologia”
Na segunda parte de seu discurso em Trento, Itália, Sergio Marchionne, CEO da FCA, fala dos veículos autônomos e de como está preparando o grupo “para a próxima revolução”
Imprensa FCA – Além das perspectivas a respeito dos carros elétricos, a segunda área que quero abordar é a dos veículos autônomos. Existem muitos benefícios nesse caminho, incluindo melhorias na segurança, redução (ou eliminação) de acidentes causados por erro humano, redução do congestionamento, mais tempo livre e um novo nível de independência e qualidade de vida para idosos e pessoas com deficiência por meio da ampliação da mobilidade individual.
De acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, trinta pessoas morrem todos os dias nas estradas norte-americanas em acidentes envolvendo condutores sob o efeito do álcool. Isso se traduz em uma morte a cada 51 minutos e um custo anual de mais de 59 bilhões de dólares devido a colisões relacionadas ao abuso de álcool.
Outro estudo avalia que, em média, quase duas horas de tempo adicional por dia seriam disponibilizadas para a realização de outras tarefas se não estivéssemos ao volante. Muitos estão trabalhando para tornar os benefícios dessa tecnologia uma realidade: não apenas fabricantes de automóveis, mas também revolucionários externos, incluindo alguns dos gigantes da tecnologia.
Existem duas abordagens diferentes para o desafio do desenvolvimento de veículos autônomos. A primeira, que poderíamos chamar de “evolutiva”, consiste em uma evolução progressiva pelos cinco níveis de autonomia, que vão da não-automação a um veículo completamente autônomo. Ignorar a progressão e trabalhar diretamente com veículos totalmente autônomos é outra abordagem, “revolucionária”.
Na FCA, acreditamos que a abordagem adequada é uma combinação das duas.
Por um lado, estamos realizando nosso próprio desenvolvimento de tecnologias evolutivas; por outro, estamos trabalhando em um projeto revolucionário com o Google para acelerar o processo de aprendizagem relacionado à automação total. Engenheiros da FCA e do Waymo – o projeto automotivo de veículos autônomos do Google – trabalharam juntos no último ano para integrar a tecnologia de condução autônoma em minivans híbridas Chrysler Pacifica.
Há muitas previsões sobre quando e quão rápido conseguiremos alcançar uma direção autônoma total. A Frost & Sullivan prevê que, nos próximos oito anos, veículos com sistemas semiautônomos poderiam chegar a seis milhões de unidades por ano na Europa e nos EUA, ao passo que a frota de veículos totalmente autônomos seria de menos de 100 mil unidades por ano. A McKinsey calcula que os veículos totalmente autônomos corresponderão a uma fatia de 0 a 15% do mercado até 2030, em grande parte dependendo da resolução de fatores externos como questões regulamentares e legais, além do custo.
Acreditamos que a condução totalmente autônoma começará a despontar nos próximos cinco anos e que, no médio prazo, os sistemas avançados de assistência aos condutores desempenharão um papel crucial na preparação das autoridades reguladoras, consumidores e corporações para a realidade de veículos autônomos.
Ao longo dos últimos 50 anos, a indústria automotiva mundial passou por crises econômicas e financeiras, pela intensificação de regulamentações e má gestão. Ela foi subjugada, enfrentou falência e teve seus pontos de referência tradicionais cada vez mais destruídos. As montadoras que conseguiram sobreviver o fizeram porque mudaram seu modelo. No entanto, tudo isso parece ser um jogo infantil em comparação com a revolução que enfrentamos hoje.
A combinação desses dois principais impulsionadores da inovação – condução autônoma e a eletrificação – resultará em uma completa mudança de paradigma que transformará o transporte como o conhecemos. Em alguns anos, os conjuntos de motor e transmissão – que passaram a ser uma das principais competências que nos restaram – serão eliminados como diferencial para as marcas do mercado de massa. Além disso, “intrusos” bem capitalizados, os novos entrantes, estão preparados para desempenhar um papel revolucionário no setor. A pressão desses revolucionários será implacável.
Especialmente no mundo automotivo, que tradicionalmente tem sido conservador e lento para reagir. O que acontece agora já vimos acontecer em outros setores – como o turismo, a música e até o mundo político – onde os modelos tradicionais foram lançados em crise por novos entrantes, novos intermediários e novas plataformas. Nos dias atuais, a indústria automotiva se encontra em meio a uma transformação radicalmente similar.
Quando esse processo de desintermediação atingir um círculo completo, ele deixará as montadoras expostas a algumas questões existenciais muito básicas: O que somos e o que exatamente ofereceremos aos clientes? Existe algum valor associado a uma marca? Por que os clientes deveriam se importar? Há poucas marcas suficientemente fortes que provavelmente não serão afetadas, ou serão apenas parcialmente afetadas, por essa revolução tecnológica.
Estou me referindo a marcas como Alfa Romeo e Maserati, cuja essência é a experiência de condução. Também falo sobre a Jeep, uma marca que sempre representou liberdade e aventura, incluindo uma capacidade off-road insuperável. E me refiro, é claro, a marcas como a Ferrari, que significa tudo sobre a emoção da experiência de condução. No mercado de massa, porém, uma marca não terá a mesma importância.
No design, engenharia e construção de um veículo elétrico, a montadora em si não terá um papel significativo de valor agregado, pois ela comprará baterias e motores elétricos de fornecedores externos. Da mesma forma, para um passageiro em um veículo autônomo, o sistema de propulsão se torna algo mais ou menos irrelevante. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento e a execução dos algoritmos que governam o processo autônomo de condução exigem habilidades que atualmente não fazem parte do DNA das montadoras. Mais importante ainda, eles provavelmente podem ser desenvolvidos mais rápido e de maneira superior por “intrusos”.
Apesar da crônica ineficiência econômica do setor automotivo nos últimos trinta e poucos anos, nossa própria existência nunca foi ameaçada pela inovação. Desde o início da era motorizada, a indústria automotiva conseguiu controlar seu próprio destino. Sim, fomos submetidos à regulamentação; as emissões e a segurança assumiram um papel cada vez mais importante nos negócios.
Nós também fomos afetados pelas consequências de nossas próprias escolhas inadequadas. Morremos e ressuscitamos muitas vezes, como consequência de decisões de maus negócios, de negligência ao não intervir de maneira preventiva o bastante em processos não econômicos; e ao nos recusarmos a renunciar à nossa independência com vista a reduzir os custos de execução do que fazemos, simplesmente por causa de questões de ego.
Mas foram os resultados de nossas escolhas.
Fomos responsáveis pelo nosso fracasso, assim como somos responsáveis pelo nosso próprio renascimento. Apesar disso tudo, nunca sofremos ameaças de fora. Agora, sofremos a velocidade da inovação, da transformação e da revolução está reescrevendo as regras de engajamento na indústria automotiva. Nos dias atuais, a concorrência inclui empresas que vêm de fora da indústria e estão adotando fórmulas completamente diferentes para terem êxito.
Uma imensa nova fronteira está se abrindo diante de nós, mas a transição será dolorosa para muitos. O maior erro que podemos cometer é imaginar que a capacidade histórica de sobreviver é qualquer garantia de futuro. Não sabemos exatamente quanto tempo esse processo demorará. De fato, não sabemos quem desejará esses novos veículos ou quanto eles custarão. Não sabemos quanto tempo levará para desenvolver a infraestrutura necessária. Também não sabemos o papel que os governos de todo o mundo desempenharão no futuro ao promover a adoção de veículos elétricos ou ao redigir as regras para veículos autônomos.
No entanto, uma coisa é clara: a mudança está chegando.
Ela está se aproximando rapidamente. Ela alcançará todas as áreas do setor. E ela será disruptiva. O mercado nos apresentou uma variedade de opções. Podemos tentar fazer parte do Vale do Silício. Podemos decidir o nível de interface a estabelecer com os intrusos. Podemos apostar em um ou mais revolucionários e até adquirir um deles esperando que ele se torne a aposta certa e gere bilhões em valor ou desperdice bilhões e nos leve diretamente para a falência. Podemos escolher a consolidação, o compartilhamento de conhecimento técnico, o investimento e o risco com outra grande montadora.
Algumas dessas alternativas podem não ser viáveis. Mas, agora mais do que nunca, precisamos estar abertos a todas as alternativas. Não podemos nos iludir acreditando que conseguiremos substituir ou afastar os gigantes da tecnologia. Precisamos estar atentos a esses intrusos, até mesmo recebê-los e nos beneficiar dos seus conhecimentos. Na FCA, durante os últimos treze anos e meio, nós nos preparamos todos os dias.
Já passamos por dificuldades e aprendemos a viver com a incerteza. Estamos prontos para lidar com qualquer coisa. Se existe algo que nos torna diferente é o compromisso de sempre ver o futuro e o desconhecido como uma oportunidade e acolher o desafio do novo. Nossa liderança é composta por homens e mulheres que compreendem a necessidade de viver uma cultura de mudança. Não hesitamos diante da ideia de que as tecnologias revolucionárias estão remodelando o ambiente competitivo, bem como o próprio setor automotivo.
Mais de uma vez, já refutamos previsões externas de ruína e trevas. Já demonstramos que temos coragem de enfrentar e superar a adversidade. Desenvolvemos um instinto natural de adaptação a eventos inesperados no mercado e, se necessário, até mesmo nos transformar.
Eu poderia dar a você muitos exemplos. Como quando a Fiat estava à beira do fracasso em 2004 e a levamos a atingir as maiores receitas da sua história. Como, em meio à crise global, fizemos parceria com a Chrysler, que estava à beira da falência, transformamos a empresa e fizemos uma fusão com a Fiat para criar uma montadora global de alto nível. Como quando elevamos a marca Jeep, de algumas centenas de milhares de unidades por ano, a uma potência mundial com recorde de vendas durante cinco anos consecutivos, ultrapassando a marca de um milhão de veículos nos últimos três anos. Como quando lançamos uma estratégia ambiciosa para expandir o portfólio de produtos da Maserati, que a transformou sua presença modesta em uma marca com abrangência total do mercado de luxo, e que fez seus lucros moderados se tornarem os melhores resultados da sua história de mais de um século.
Eu também poderia citar a velocidade com a qual reagimos à mudança na demanda de mercado e como modernizamos nossas fábricas na América do Norte para produzir mais picapes da marca Ram e os SUVs da Jeep. E, obviamente, eu poderia falar sobre o desenvolvimento de tecnologias para veículos autônomos em colaboração com o Google nos Estados Unidos e com a BMW, a Intel e a Mobileye na Europa. Fizemos tudo isso sem grandes anúncios ou propagandas.
Esse é o nosso jeito: manter o foco, cumprir objetivos e deixar que outros nos julguem pelos resultados. É assim que planejamos manter o discurso, mesmo enquanto nos preparamos para enfrentar a próxima revolução: por meio das nossas ações.
* Sergio Marchionne é CEO da Fiat Chrysler Automobiles. O título de Doutor em Engenharia Mecatrônica foi concedido em 02 de outubro pela Università di Trento, Itália, como reconhecimento por sua contribuição ao setor automotivo, seu papel na reformulação da Fiat, a aliança com a Chrylser e a fusão entre as empresas, criando um importante e relevante grupo automotivo mundial. A primeira parte de seu discurso pode ser lido aqui.
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