“Viagem” saudosista ao velho sítio da tia Nina, em Pires e Albuquerque

O receptivo sítio da tia Nina, em Pires e Albuquerque, antigo povoado mineiro, sempre foi nosso destino predileto de férias. Na minha época criança e adolescente, isso se tornou rotina oficial no calendário de julho e dezembro. Era para lá que nos dirigíamos afoitos para correr livremente pelos campos repletos de frutíferas,algumas pouco conhecidas na cidade: jenipapo, jatobá, “merda de cachorro”, araçá, mangaba, fruta do conde, cabeça de nego (araticum), etc…

Meio temeroso, eu arriscava andar a cavalo de vez em quando, apavorado com medo de o animal disparar sem controle mata adentro. “Passarinho” nos levava dócil em preguiçosas cavalgadas, por vezes até o lado oposto do Rio Verde, sede de fazenda de um pessoal amigo dos tios.

Certa feita, ao descer numa tarde chuvosa pelo barranco que desembocava no rio, “Passarinho” escorregou e ambos caímos feio dentro das águas barrentas, felizmente ilesos. Mas isso é uma outra história…

Anfitriã 10 – A tia Nina se esmerava ao máximo para nos recepcionar com tudo de bom que os costumes roceiros oferecem, principalmente no quesito gastronômico: café açucarado com rapadura, biscoitos fritos no óleo de pequi, bolo de fubá, doce de laranja, manga…

Também degustávamos {às escondidas} o delicioso licor de pequi que ela preparava, mantendo-o numa garrafa de formato adornado, transparente, em cima do armarinho da sala de estar do sítio. Dava água na boca só de ver aquele amarelão forte da bebida, difícil resistir… Os tios desconfiaram disso depois de certo tempo. “Esse licor está baixando muito rápido”, comentou Ambrósio. “Só eu que tomo…”

Havia sempre disponível outro tipo de licor caseiro, o de jenipapo, bebida preferida do excelente contador de histórias roceiras, o falante tio Ambrósio. Antes das refeições, Ambrósio provava uns três golinhos da bebida, estalando a língua prazerosamente. Depois, abria franco sorriso, expondo gengivas desprovidas de dentes. “Esse é dos bons”, elogiava.

Na hora das refeições, a tia fazia questão de nos servir pessoalmente, questionando se queríamos mais disso ou daquilo no prato. O suco de limão sem gelo substituía os refrigerantes atuais. Era ótimo para arrefecer as doces exageradas de pimenta na comida, aprendi cedo…

Lá pela timidez do sol da tarde, tia Nina nos chamava para tomar café, outro show de delícias caseiras. Abusei muitas ocasiões do requeijão disponível à mesa, e o resultado disso foi corridas e mais corridas até à casinha (sanitário) nos fundos do quintal, diarreia brava. Ocorria ainda de ser torpedeado nesse vai e vem por dezenas de carrapatinhos, e aí gastava horas de paciência para retirar os chupões intrusos da pele criança. Sobrava muita coceira…

Com tantos mimos, passear no sítio da tia Nina sempre foi nosso melhor programa no transcorrer das fases peraltas. Eu ficava deveras impressionado ao comprovar que os tios se preocupavam conosco de maneira excepcional: camas sempre limpinhas e roupas lavadas semanalmente. “Vistam o casaco, está frio!”, alertavam.

Gostava também de assistir tia Nina preparar o almoço ou o jantar, fustigando a lenha para aumentar as chamas do fogão. Nem me importava com a fumaceira e chiado de lenha sendo incinerada reinante na cozinha de chão batido. O arroz era lavado numa cabaça partida ao meio, e a água lançada diretamente ao lado do quintal, pela janela da porta “partida” (metade fechava e a outra ficava aberta).

“Se está com muita fome, aguente: logo o jantar vai ficar pronto”, avisava a tia. Na verdade, eu estava é curioso em observar o alvoroço da legião de galinhas angola que rodeavam a cozinha: as aves voavam vorazes rumo à água lançada na terra do quintal, evidentemente concluindo existir ali algum grão de arroz…

Depois do jantar, não tínhamos outra opção que não fosse papear na salinha de entrada da casa, ouvindo o cricrilar ininterrupto de grilos e piados de corujas em voos rasantes, com certeza atrás de presas.  A lamparina a querosene proporcionava luz tremulante no ambiente, além de projetar sombras esquisitas nas paredes. Dali, já íamos direto para a cama, momento em que o rádio de pilhas dos primos Ronaldo e Paulo entravam em disputa barulhenta. O samba tinha primazia na escolha das estações.

“Desliguem esses rádios e vão dormir, crianças!”, gritava a tia lá do seu quarto, situado no centro do corredor de acesso à cozinha. Percebia que tio Ambrósio, mais comedido, resmungava algo contrariado repetidas vezes, mas nunca entendi direito exatamente o quê…

Pouco a pouco, tudo cedia lugar a um silêncio sepulcral, embalando-nos em sonhos inocentes, até que o canto estridente do galo índio sinalizava um novo dia, hora de levantar…

Essas lembranças se tornaram uma espécie de acalento natural da alma. Porque, o simples fato de já estar ali, no sítio dos tios, significava sonhar uma realidade feliz e duradoura. Tanto que o conjunto de passeios de férias no velho sítio se tornou recordação de intempestiva saudade na atual fase adulta (e de quase aposentadoria) do próprio existir mundano…

*João Carlos de Queiroz é mineiro de Montes Claros

 

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