Deus decidiu que não era ainda o meu dia…
Imagine estar a centímetros das rodas traseiras de um caminhão em alta velocidade, sentindo a bicicleta que tenta conduzir totalmente desequilibrada. Passei por isso durante uma de minhas viagens pedalantes. Aliás, quase virei "suco de melancia" naquela manhã de sufoco estradeiro...
Por João Carlos de Queiroz – Aventuras ciclísticas e motociclísticas sempre me emocionaram. Até mesmo para vivenciá-las solitariamente, como aconteceu várias vezes na minha saudosa city, Montes Claros-MG. Dali, no exercício prático da força adolescente, partia para muitos lugares próximos (Pires e Albuquerque, Engenheiro Navarro, Coração de Jesus, Pirapora, etc.).
Uma ocasião, decidido novamente a subir a serra sozinho, peguei minha surrada magrela e empreendi enérgico esforço rumo às terras bocaiuvenses, ponto predileto de parada serena para fôlego carinhoso junto aos parentes paternos. Incluíam-se aí passeios nos sítios familiares e traquinagens não maliciosas.
De antemão, já sabia que seria prazeroso perambular na centenária cidade durante dias, paparicado por tias e tias. Assim, aproveitava meus tenros anos de adolescência para atrair mimos dos entes queridos e a atenção das meninas locais. Sem falar nos bolos, doces e biscoitos a todo instante…
OS PREPARATIVOS…
Para viajar, eu preparava a velha bicicleta alguns dias antes, engraxando-a primorosamente, além de lustrar aros e quadro. Checava ainda as condições dos pneus, câmaras de ar, pedais, etc. A viajante reluzia à menor luminosidade, e eu acreditava ser o astro das atenções quando circulava pelo bairro Edgar Pereira ou nas cidades visitadas.
Morávamos então na Rua Cravina, casa de estrutura elevada num quintal úmido, repleto de frutíferas, sapos e aranhas caranguejeiras. Aos fundos, passava um riacho de tom chocolate, eventualmente fervente. Na realidade, virara esgoto borbulhante de fábrica de ração e óleo de mamona.
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Resolvi iniciar a viagem tão logo o sol deu indícios de que seria mais um dia quente. Ao subir a serra da BR-135, considerado o primeiro do segundo pior trecho do percurso, percebi que um caminhão se aproximava. Era um Mercedes-Benz transportando suínos. O surrado veículo “choramingava” marcha forte e em ritmo lento para subir a serra, e iria passar bem a meu lado. Carona potencial, decidi.
Em questão de minutos, o caminhão posicionou-se ao lado da bicicleta, ultrapassando-a devagarzinho. Ágil, agarrei-me à carroceria do lado do acostamento, aproveitando o espaço disponível. Prudentemente, fiquei mais atrás, e assim vencemos a serra quilométrica…
Ao perceber que outra marcha do Mercedes-Benz havia sido engatada, significando que o caminhão desenvolveria velocidade a partir dali, até pensei em largar a trepidante carroceria e desistir daquela carona intrusa. Porém, sentindo-me seguro por estar atracado a um dispositivo motorizado, praticidade impensada ao sair de casa, decidi continuar.
Dessa forma, cabelos ao vento (ainda tinha farta cabeleireira), a viagem continuou a transcorrer normalmente. Em algumas baixadas, quase desisti quando o Mercedes sibilou ameaçadoramente os pneus no asfalto quente. Se fizesse alguma manobra para o lado em que estava…
Os suínos, coitados, até me olhavam intrigados entre as grades de madeira da carroceria, imaginando que louco eu era. Não raramente, voavam dali farelos de milho e palha contra o meu rosto, resíduos descartados pela forte ventania imposta pela velocidade caroneira.
Já decidido a continuar firme na desafiadora posição, flexionei o corpo para ter mais segurança em caso de alguma emergência no trajeto. Pensava comigo: “Será que o motorista está me vendo?” Hoje, analisando esse episódio, concluo que não. Em vários momentos o caminhão oscilou a carroceria pra lá e pra cá, quase saindo do asfalto para ganhar o acostamento. Momento em que forcei o braço para ficar mais atrás, posicionado na retaguarda. Se tivesse uma corda teria feito um laço entre o caminhão e a valente magrela…
Baixada da Lagoinha…
Na Baixada da Lagoinha, o caminhão embalou pra valer, e pensei ser crucial abandoná-lo. Mas logo o Mercedes assumiu seu tradicional ronco forçoso para subir a rampa adiante, e assim continuei firme, sentindo o tremular meio desequilibrado da bicicleta…
Após vencermos a longa reta da Escola Mariana Alves dos Santos, havia uma temível descida em curva (à esquerda), sede da Pensão Cearense, famosa pela paçoca de pilão. Mesmo relutante, analisando os prós e contras, deduzi que não custaria tentar continuar na perigosa posição caroneira. Sabia que o restante do percurso era tranquilo, à exceção de sinuosa serra próxima ao município bocaiuvense.
Conforme previra, o caminhão ganhou mais velocidade não apenas na descida, mas também durante a longa curva abaixo. Momento em que senti a bicicleta se desequilibrando gradualmente, guidão tremulando indócil. Para piorar, o Mercedes empreendeu curva muito fechada, espremendo-me a poucos palmos entre o asfalto e o acostamento alto. Melhor desistir…
Na crença de que bastaria soltar a mão esquerda para me livrar do caminhão, assim fiz. Ledo engano. Entrou em cena a Lei da Inércia(“a tendência de um corpo é ir em frente”). Para meu desespero, ao invés de me distanciar do Mercedes, a bicicleta avançou para colidir com sua retaguarda, obrigando-me a virá-la para a direita. Foi por pouco que evitei o choque. Mas o sufoco não terminou aí…
Cada vez mais veloz, a pedalante ultrapassou tranquila as rodas do caminhão, posicionando-se entre a cabine e a carroceria. Também não quis acionar os freios, pois poderia entrar diretamente debaixo do monstro metálico…
Jamais esquecerei essa cena: sibilantes, as rodas do 1113 pareciam sirenes coletivas, em sintonia desordenada com o farfalhar rangente da carroceria de madeira. Ainda captei , de relance, as retinas estateladas de suínos nas grades, espectadores do sufoco de morte que vivenciava. “Não iria conseguir sair daquela…”, deduzi apavorado.
A curva se estreitou ao máximo no final, e o Mercedes avançou rumo à bicicleta, já no extremo do pequeno espaço entre asfalto/acostamento. Agora, estava a centímetros da carroceria. Se insistisse em ficar ali, seria engolido fatalmente, esmagado… A opção de salvamento era uma só: “voar” direto para o matagal lateral. Não deu outra…
“Voamos” que nem a bicicleta do filme E.T. para o manto verde de capim colonião estendido por centenas de metros à direita da intrigante curva. Caí naquele colchão vegetal sem sofrer nenhum ferimento, já preocupado se a bicicleta conseguiria voltar a rodar…
Ainda sedado pela surpresa do acidente, pude apreciar o último uivo sibilar dos pneus do Mercedes atritando no asfalto próximo. Ato contínuo, fui em busca da bicicleta, 100% intacta. Pensava que pelo menos a roda dianteira teria se soltado, o que não aconteceu. A única perda foi do cantil de alumínio do meu pai, envolto numa lona verde desgastada: acondicionei nele água com limão, bebida preciosa em percursos que exigem fôlego pedalante. O cantil sumiu no meio desse oceano de capim…
Outra empreitada difícil foi conseguir retirar a bicicleta daquele denso matagal, arrastando-a penosamente, passo a passo. Estava distante, uns 10 metros do asfalto, pista situada a mais ou menos uns três metros acima da “área de aterrissagem forçada”.
O interessante é que não apareceu ninguém para me socorrer. Outros carros passaram rápidos ao largo, sibilando energia no contato asfáltico.Com garganta ressequida ao extremo (que falta fez o cantil!), finalmente consegui chegar à pista.
Após nova checagem na bicicleta, reiniciei a marcha, parando na Pensão Cearense para tomar água e comer paçoca de pilão. “O que houve, menino?! Sua roupa está toda repleta de manchas verdes!” – questionou uma senhora. “Tirei uma soneca no capim e sujei a roupa”, apenas respondi, preguiçoso para contar toda a história real…
Depois conto mais…
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