Flamenguistas x Velório em Cuiabá: morto estava a metros da torcida em polvorosa
Texto: João Carlos de Queiroz – Flamengo x Velório, devia ser a denominação providencial de combatentes não em campo, mas numa área pública, mais precisamente na região do Centro Comunitário do Novo Terceiro, em Cuiabá. Isso porque, na sede da entidade, situada a menos de 20 metros, jazia ontem à noite um dos moradores locais, conhecido apenas por Geraldo. Sujeito comum, vitimado por cirrose hepática e outras complicações não menos graves, decorrentes do intermitente vício alcoólico.
Duas coisas estavam evidenciadas a quem passasse pelo local: enquanto o primeiro aglomerado de pessoas mantinha silencioso tom respeitoso, formando uma roda de sentinela à entrada do Centro Comunitário, o segundo grupo, que reunia barulhenta torcida de olho no telão, vibrava a cada investida frustrada do Flamengo.
Tal disparidade de comportamento levou “Régis” (Reginaldo Amorim Seguro) a solicitar, por vezes seguidas, compreensiva moderação no tom dessa euforia, causada pela expectativa de o Flamengo não decepcionar e ser o campeão, não perder o título (como realmente aconteceu).
Também flamenguista, o simpático comerciante Régis desligou o projetor tão logo o juiz apitou o final do jogo e começou o lenga-lenga explicativo dos jogadores rubro-negro, a fim de tentar justificar seus erros em campo. Pois o adversário, pelo que pôde ser visto por milhões de pessoas, realmente dominou o jogo em tempo integral. O Flamengo registrou até algumas investidas de heroísmo, quando quis reverter o placar que o levaria a perder o cobiçado título e deixar impressa grotesca decepção na sua grande torcida. A superioridade do adversário ficou latente…
Sereno, consciente de que, naquele dia, o tempo estava mesmo ruim para o Flamengo, o torcedor Régis baixou a bandeira flamenguista que dependurara à porta do seu barzinho. Disse estar triste pela perda do amigo Geraldo (velado ali pertinho) e, também, pela fuga do sonhado título flamenguista, de campeão da Copa Sul-Americana. “Não vamos desrespeitar o velório, pessoal. Vou desligar o equipamento, desculpem…” – assim justificou o fim da sessão projetada.
Régis ainda tentou agradar os demais flamenguistas presentes com som moderado de pagode, mas o grupo do contra queria volume máximo, e então ele não teve outra alternativa senão desligar tudo. Alguns protestaram, outros entenderam…
Para amenizar o clima de velório que recrudesceu também no entorno do barzinho, após o som ser desligado, Régis convidou todos a se servirem de excelente peixada (gratuita) que a menina Anny Carolliny preparou num capricho de encher a boca d’água. A cuiabanada esqueceu tudo: perda do título e o próprio velório, naquele momento mais desprestigiado de pessoas e com muitas cadeiras vazias no círculo formado na porta do Centro Comunitário.
O mais interessante de tudo, a meu ver, não foi nada disso: completamente perdido, tristeza estampada numa expressão de socorro, o cachorro do defunto tentava entrar dentro da sede para se despedir do seu dono. Muitos espantaram o animalzinho, sem entender que ele também sentia pacas aquela partida. “Eu vi quando ele ficou bem ao lado do caixão”, comentou um dos clientes.
De todos que lá estavam, no velório, talvez o maior sentimento de perda estivesse mesmo naquele animal que os irracionais {homens} qualificam de seres inferiores, sem alma, dotados apenas de instinto. O bichinho ficou num ziguezague nervoso nas imediações, esbarrando no não consentimento dos poucos que ainda velavam seu companheiro. Seu destino me preocupou. “Vou alimentá-lo”, garantiu Anny.
Régis, numa atitude surpreendente, pegou todo o resto da peixada, ainda morna, e ofereceu para o animalzinho. Logo outros amigos do enlutado canino se reuniram para degustar o delicioso menu “Afaga Tristeza Flamenguista”. Deu pra perceber que o cãozinho do morto somente mordiscou a comida, volteando sempre a cabeça em direção à sede do Centro Comunitário. Óbvio que entendia todo o sucedido…
Olhando a cena, a menina Anny lembrou que o dito Centro Comunitário “tem alguma coisa pesada”, talvez por sediar tantos velórios, ao invés de eventos festivos. “Virou capela velório”, comentou Dinho, presente à mesa. Anny citou um dia em que dançava lá numa festa, comemoração animada, e então levou um tapa fantasma no pé da orelha. Nunca soube qual mão foi responsável por uma agressão tão violenta, pois ao lado dela e do seu companheiro de dança não havia mais ninguém…
Ainda vi o cachorrinho descendo a rua em direção à Avenida Miguel Sutil. Mas logo voltou desalentado, e, sem-graça, fingiu não ver o enxota-cachorro dos poucos presentes no velório do seu já saudoso Geraldo…
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