O “comedor de defuntos”

Necrófilos são pessoas que sentem atração sexual por defuntos. Outros querem devorá-los

João Carlos de Queiroz, jornalista – Lá pelos anos 70, quando o mundo ainda não falava tanto em guerras e igualdade de gêneros, existiu, no Norte de Minas Gerais, mais precisamente em Varzelândia, um sujeito pálido, rosto variolado, expressão de quem não tinha lá muita esperança em ser feliz na vida. O nome dele, Mauro, também não emprestava maior referência de credibilidade à sua apatia com tudo, visivelmente mórbida. Um cara azedo, por essência nata.

Conheci Mauro por acaso, quando ele era secretário de um comitê eleitoral em Montes Claros, cidade que passou a residir depois que suas maquiavélicas degustações gastronômicas foram descobertas. Não deixou de cumprir bom tempo num hospício em Montes Claros, no bairro Monte Carmelo. Ninguém, em sã consciência, gosta de “devorar miolos de defunto”. Mauro se deliciava com isso…

À primeira vista, após os cumprimentos iniciais de caráter profissional (eu iria trabalhar no comitê), não estranhei que o persistente silêncio de Mauro seus e olhares furtivos pudessem significar algo sinistro. Normal para alguém que atuava com todo tipo de gente, e, principalmente, o encarregado de resolver questões distintas, quase todas à base de dispêndio financeiro. O autêntico político não dispensa pessoas capazes de driblar o jogo de interesse financeiro dos paupérrimos da Nação, sabia…

Orientado para me receber e instruir acerca do serviço, Mauro mal sorriu nesse encontro, ou sorriu de maneira desinteressada, quando o assunto espichou além da conta, do seu tempo impaciente. Percebi isso e evitei delongar qualquer tema à parte dos objetivos do comitê.

Impressionou-me, claro, suas unhas imensas, bem tratadas, em algo lembrando as tétricas de Zé do Caixão, o ator fajuto José Mojica Martins, que tentou, por anos a fio, alguma celebridade de terror nas telas cinematográficas do Brasil. Tornou-se tão-somente um palhaço, não autorizado do mundo das trevas.

Já o caso do esbranquiçado Mauro era bem diferente, também registrei: não gostava de lenga-lenga com ninguém, ia direto ao assunto. O próprio candidato, certa feita, recebeu dele desfeita impensável para empregados. Surpreendentemente, não puniu seu subalterno, ignorando a cancelada proposital do atrevido bexiguento. No fundo, o candidato sabia o quanto aquele sujeito podia ser útil nos seus projetos ambiciosos.

Mas vamos ao que aconteceu em Varzelândia, município protagonista da “vampirada” sedenta de Mauro, um simples morador. Toda a cidade vivia alarmada com as violações de túmulo e crânios dos “moradores subterrâneos”, hibernados perpetuamente em jazigos ou sepulturas comuns. O mais aterrador: alguém, ou alguma coisa, devorava os miolos dos defuntos novos no pedaço. O cérebro de quem partiu para a “cidade dos pés juntos” sempre surgia vazio, tipo uma fruta sem recheio, quase no ato do lacra-corpo.

Houve quem deduzisse ser isso obra de animais selvagens, pois havia onças naquela região. Já outros, raciocínio mais claro, não concordaram, argumentando que jamais animais do tipo conseguiram arrancar lacres cimentados de criptas ou destampar caixões funerários, etapas fundamentais para “se servirem da miolada dos mortos chegantes”.

A partir de tais suspeitas, a polícia começou a investigar, e em cada velório, dos raros que aconteciam por ali, sempre um policial era destacado para investigar os presentes. Mesmo porque esse mistério já trazia descrédito zombeteiro às autoridades locais.

Mais ou menos por essa época, a gorducha “dona” Acácia foi convocada a deixar seus restos mortais na Terra e partir para outras missões. Um velório pra lá de concorrido, com muita gente chorosa, incluindo os políticos da região. A falecida sempre ajudava seus correligionários políticos. Daí o crescente coro de lamentações, pois a próxima campanha aconteceria apenas a alguns meses…

Mauro foi um dos primeiros a chegar ao velório, e não desgrudou seu olhar de cobiça ao corpo obeso de “dona” Acácia. Os familiares, a princípio, presumiram que ele tivesse tido com ela forte relacionamento amigo, mas os mais próximos, filhos, nem sabiam de sua existência, quem era ou fazia o quê.

O enterro aconteceu no final da tarde, prenúncio de noite escura e tormentosa de chuvas que, talvez, irrompessem pela madrugada. O padre economizou palavras na bênção, atitude imitada pelos familiares, igualmente econômicos nos choros de despedida. Todos olhavam apreensivos para a repetição escandalosa de trovões e relâmpago latejantes e de fúria luminosa por todos os lados. Tempestade, na certa.

Mauro nem foi ao enterro, já com planos de visitar a morta após a debandada dos parentes e amigos. E assim procedeu, munido de pá e picareta, utilizados na violação de túmulos. Para quebrar cérebros e ingerir a miolada branca, ele utilizava pedras de porte mais acentuado, pródigas no terreno do cemitério interiorano.

Na quietude adormecida da madrugada, o anormal saiu pelas ruas desérticas de Varzelândia rumo ao cemitério, devidamente municiado de ferramentas, as  citadas no parágrafo anterior.

Por ser um Campo Santo, de cidade simplória do Norte de Minas Gerais, o portão ficava sempre aberto, facilidade comemorada, mais uma vez, pelo necrófilo variolado, de natureza gastronômica a corpos inanimados.

Mauro desfilou então confiante, apetite a pleno, entre túmulos e tabernáculos, ciente do exato lugar em que a avantajada defunta pretendia descansar para sempre. Ele estivera lá pela manhã, assistindo o joga-terra-fora repetitivo da pá coveira. Como perguntar não ofende, assim ficou sabendo quem teria a “honra” de aportar sua carcaça naquele espaço…

A cripta de “dona” Acácia não foi empecilho para o guloso comedor de defuntos chegar ao prato cobiçado, a morta. O cadeado, simples, ele quebrou fácil com a picareta, descendo pela escadinha de acesso às gavetas mortuárias. O facho da lanterna logo desnudou o nome da gorducha impresso na recente moradia retangular, lacre de cimento ainda fresco.

Sem pressa, seguro de sua impunidade, Mauro conseguiu retirar o caixão e destampá-lo ali mesmo, naquela salinha esdrúxula. Na mochila, um martelo, ao invés de pedra. Sentia-se feliz por estar modernizando seus métodos de quebrar crânios humanos…

Após dependurar a lanterna, devidamente amarrada com barbante, que trouxe de casa, Mauro desferiu o primeiro golpe na parte traseira do crânio da defunta. Mais dois golpes fortes, precisos, e o coco craniano foi rompido, desnudando seu interior esbranquiçado, levemente untado de sangue. “Maravilha de refeição”, deve ter pensado ao retirar dali um punhado de miolos, levando-o sofregamente à boca.

Eis que, entretido nesse jantar mórbido, ele nem se deu conta de estar sendo observado, do alto da escadinha da cripta, por dois policiais. Foram eles que desvendaram o enigma dos crânios despedaçados no cemitério local…

Detido inicialmente, Mauro foi liberado pela Justiça para cumprir sua pena num sanatório especializado em enfermidades complexas, sediado em Montes Claros.  A doença dele, com certeza, podia ser enquadrada aí.

Anos depois, ele foi reintegrado à sociedade local, e foi justamente aí que eu o encontrei tranquilo, no tal comitê citado lá em cima, no comecinho desse blá-blá-blá quase supersticioso, mas real.

Na convivência de meses, senti-me tentado a esmiuçar o porquê dele {Mauro} ter cismado em comer defuntos, na hipótese suspeita de estar curado dessa doença. Tal pretensão ficou apenas nos meus planos, nunca indaguei nada. Loucura é algo que precisamos também respeitar, talvez tenha dito a mim próprio, como forma de desculpa pela omissão da tentativa. Nunca se sabe a reação de dementes. Afinal, um cara que faz sanduíche de mortos não é pessoa de papo confiável, convenhamos….

 

 

 

 

 

 

 

 

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